22.6.20

Até ao crepúsculo que se emancipa


Admitem-se ao estuário os rostos emaciados que pedem tréguas. O rio, como se fosse um altar de águas termais. Purifica os meandros calcificados que se esgotaram nas veias encardidas, habilitando a angústia das almas estilhaçadas. 

Admitem-se os rostos, sem franquia. A toda a hora. Podem ser matinais, carregando ainda o peso intemporal do arrependimento. Não têm de pagar honorários. O estuário é imenso, comporta uma multidão de olhares trespassados pela melancolia, não sabe o que é o lucro mastim. Espera-se que o rio atue com a linhagem medicinal das águas termais e repare as arestas gastas que se desafeiçoam dos rostos, tornando-os macilentos, estremunhados com as cores ácidas com que o mundo vem servido, consumidos por sobressaltos por inventariar. Mal entram nas instalações do estuário, são convencidos ao despojamento do lastro que carregam. Como se tivessem de se esvaziar para se congraçarem na praça onde o processo heurístico acontece. Os impetrantes são avisados para não esperarem milagres. Esses, são de outra lavra (o cimento de um escol e dos patronos da metafísica).

Possivelmente as almas admitidas no estuário não se recordam da estadia. A hibernação seduz ao esquecimento de quem são, ao esquecimento do que são. Ficam em letargia, banhados pelas águas tépidas do rio, à mercê das discretas marés que serpenteiam em rima com o relógio. Não se pode dizer quanto tempo ficam em letargia. Depende de cada pessoa. Da profundidade das suas angústias. Da vontade, naquela altura independente da vontade que se julga dominar, para sepultar os arrependimentos, as aflições, os compungimentos estéreis. Até que o crepúsculo emirja no horizonte tardio e faça desmaiar a luz diurna. O crepúsculo inaugura o espaço sem paradeiro entre o dia e a noite. É terra de ninguém. O lugar para as almas se libertarem do coma induzido e caminharem por sua vontade. Uma vontade desenhada a partir do zero.

Até que o crepúsculo seja o firmamento sem esteios, na véspera da reinvenção que se exige, num processo demiúrgico que refaz as fundações em que as pessoas se suportam. À saída deste labirinto, os rostos dantes torturados que clamavam por tréguas podem ser diferentes ou podem ser iguais. Não interessa. Só interessa reconhecer o mergulho à medula da alma, lá onde se refugiam os seus críticos esteios, e saber que não são os estéreis arrependimentos que ditam a reinvenção das pessoas. 

O estuário, à espera do crepúsculo emancipado, cuida do restante.

Jambinai, “In the Woods” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=G4QMs3LFz8Y

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