4.6.20

Despertador


Mogwai, “Emergency Trap”, in https://www.youtube.com/watch?v=drfqa53Dbao
Não tinha sono. E, contudo, os sonhos tornavam-se a pele que respirava. Era como se fosse permeável a tudo o que tivesse a linhagem de um sonho. Não sabia se o era. Continuava acordado. Pela tela do pensamento passeavam-se frases sem sentido, palavras que não combinavam umas com as outras. 
Estava acorrentado a um labirinto – e por mais que procurasse, não havia maneira de encontrar uma porta que fosse a alfândega do labirinto. Os postigos ainda guardavam umas vagas gotas da chuva que caíra. No seu frágil equilíbrio, as gotas circenses tremeluziam sob o olhar do sol que derrotara as nuvens plúmbeas. A tiragem dos sentidos subia ao miradouro. Em demanda de uma imagem maior, para que toda a paisagem ficasse sob o jugo de uma mão serenamente juíza. 
Era um lugar estranho. Já eram quase onze horas da noite e ainda era dia. A luz desmaiada do ocaso haveria de teimar até para além da meia-noite. O crepúsculo demorava-se e o sono continuava adiado. Não dera conta da conspiração do verão em latitudes tão nortenhas. Era como se o relógio tivesse sido adulterado pela exposição a esta latitude sob o efeito malsão do verão. O verão ainda não chegara, em rigor: era o estertor da primavera, quando ela diz adeus e cauciona o verão. Não chega a ser noite. Como é possível o sono ter lugar neste lugar?
Deste paradeiro desconhecido, demandei as ruas sem gente. Detive-me junto ao porto onde os navios esperam pela faina madrugadora, à espera das sucessivas viagens entre os dois lados do estreito para trazerem as pessoas para a cidade. Um par de boémios desfez o silêncio. Pediram-me cigarros. Desinteressado, dei-lhes o resto do maço. Agradeceram. A embriaguez não denunciara a educação. Retribui o agradecimento com um leve aceno de mão. (Não saberia retribuir no idioma que não falo). Quando o crepúsculo se começava a instalar, foi substituído pela renovação da luz clara que era presságio da alvorada, vinda do lado contrário do céu. A noite não chegou a ser. O sono rimava com essa ausência.
Forasteiro como nunca sentira ser, entreguei o corpo à cama. Corri as cortinas densas que escondem o quarto da luminosidade persistente. O sono continuava teimosamente distante. Assim como assim, já não era hora de dormir. Mas os sonhos irradiavam, efusivos, como se fossem a expetoração de um geiser. Se ao menos a erupção fosse catalisada em estrofes de poemas, a insónia não teria sido em vão. 
Mas o despertador interrompeu a vigília. O sonho tinha acontecido por dentro do sono. Fingindo-se de esclarecimento. 

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