5.6.20

Penhor


Nils Frahm, “Familiar” live Le Poisson Rouge, New York, in https://www.youtube.com/watch?v=yumi4f59ITI
O espaço vital. As paredes que o delimitam. O território por dentro. A soberania: retrato fidedigno das almas dos seus habitantes. Não é pouco o gozo exclusivo de um poder que se admite na verossimilhança de uma fronteira. Os outros são mesmo outros. Lá fora, exibem um quinhão da soberania – afinal, este lugar é uma democracia. 
No reduto de que somos suseranos, restringe-se a democracia aos seus habitantes. Tirando isso, aplaude-se a autocracia. Não pode ser de outro modo. Ai das casas se fossem serventuárias da soberania de todos. Não bastavam os voyeurs militantes, os que se traduzem em olhares intrusivos, exigindo que as janelas sejam cobertas por cortinas. Assim o determinam o decoro e um imperativo de privacidade. Os olhares forasteiros extinguem-se da intimidade. É a soberania do espaço vital que o demarca. Os que não hesitam em espiolhar as funduras de uma casa distraidamente exposta ao exterior não conseguem o mínimo denominador comum, que é uma troca de lugares. Gostariam de se sentir invadidos por outros que agem como eles?
Levanta-se o penhor sobre as arcadas onde se agiliza a serenidade do espaço interior. Todas as casas são castelos. A soberania atomiza-se. Estilhaça-se em inúmeros casarios que se amontoam nas cidades e se espalham na paisagem esparsa do campo. Talvez seja mais intensa nas casas isoladas, sem vizinhança por perto. Dir-se-ia ser menor o risco de intrusões servidas em soezes olhares alheios que se vertem sobre o interior das casas. Ninguém o pode garantir. Ninguém pode atestar que na casa isolada a menor probabilidade de ser invadida por olhares voyeurs a isola desses olhares.
O adeus a uma casa é como uma certidão que atesta os pedaços da alma que ficam embebidos no seu chão, nas suas paredes, nas janelas como espelhos dos olhos de quem a habitou. A alma não fica diminuída com o que dela fica vertido na casa de saída. Transvasa-se para outra casa, um processo semelhante. Mas não é simétrico, o processo. A casa que abre os braços aos neófitos habitantes foi lavada, como se o alvear das paredes extinguisse os vestígios das almas precedentes. 
Vazia, a nova casa precisa das almas dos seus novos habitantes. Precisa de se ungir com as suas almas. Eles são o seu penhor. 

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