19.6.20

Os anjos que caem (short stories #224)


          Namoravam a verdade. As asas acumulavam os sinais da maresia, sendo vizinhos de marítimas paisagens. Não se viam. Pressentiam-se. Tinham uma palavra de conforto para as almas enrixadas e que não queriam ser erráticas. Não dormiam. Vigilantes, a tempo inteiro, cuidavam de reparar os malsãos arquitetos que não hesitavam em trespassar almas descuidadas. À sua boca, as palavras pareciam ornamentos que cintilavam com o céu como pano de fundo, como se estivessem alimentadas por néones. Dizia-se que havia sempre um anjo de respaldo para todas as almas. Até para as que sobranceiramente juravam delas prescindir. Mas ninguém cuidava dos anjos. Não havia anjos que fossem tutores dos anjos. Essa era a sua fragilidade. Ninguém a intuía. Julgava-se que os anjos cuidavam de si para além de tutelarem as demais almas. Às vezes, os rudimentos que parecem fortalezas disfarçam estilhaços. Sem se ver, ameaçam ser escombros. Os anjos não sabiam domar os sismos que os fundiam em cinzas. Por mais que adejassem no seu estatuto etéreo, os anjos emudeciam quando os esteios em que se fundavam estremeciam no parapeito da fraqueza. Pois os anjos eram acometidos por fraquezas, embora as escondessem – embora as demais almas, convencidas da inerrância dos anjos, não tomassem tenência das suas fragilidades. De vez em quando, um anjo caía. Como um cometa, efemeramente tracejando o céu com um rasto de luz iridescente. Não se sabia onde caíam. Desvaneciam-se em fugazes cinzas que se repartiam por um imenso chão. As demais almas vertiam uma lágrima condoída quando sabiam do perecimento de um anjo. Mas sabiam que o anjo deixara um derradeiro legado ao fazer-se espalhar em forma de férteis cinzas por um imenso chão. Era a sua forma de nos precatarem depois de partirem. Os anjos caíam, mas não nos deixavam sós.

James Blake, “You’re Too Precious”, in https://www.youtube.com/watch?v=6WfY8wixwD8

Sem comentários: