12.6.20

Obras públicas (short stories #222)


          Certificado de habilitações: possuam-se os risos loucos dos loucos antes que um passaporte seja embaraço. As paredes gastas precisam de renovação. Têm vergonha do vento que as beija todos os dias. Esse vento que repõe o salitre que destina as paredes à decadência. É preciso adjudicar a obra. As juras de perfeição esbarram na maresia que adorna a manhã. É mesmo tempo das obras. Públicas obras: ficam à mostra dos olhares comuns, o estaleiro onde exercem os operários com os corpos tisnados pelos dias soalheiros. Os materiais amontoados no alpendre experimentam o odor dos elementos. Experimentam o mar que não está longe, no pressentimento do tempo futuro. Do estaleiro, um palco assimétrico. Os operários não perdem pitada do que se passa na rua. De quem passa na rua. Os transeuntes não reparam que um estaleiro está montado e que as obras estão em curso. Marx teria razão? (Se não lhe dissessem que os operários das obras ganham à hora mais do que um quadro médio – a teoria da classe média já conheceu melhores dias.) Os cães passeados por seus tutores prestam mais atenção à movimentação do estaleiro. São mais sensíveis aos ruídos fabris, ao entrelaçar metálico das matérias-primas, à vozearia dos operários. A obra é pública porque ao caiar as paredes torna-as nuas ao olhar dos passeantes. Paradoxalmente pública: porque ninguém repara nas públicas obras que se expõem. Nem o contratante, que só vai aparecer no último dia. Quando a obra for entregue e o contratante a passar de fio a pavio para saber se foi entregue com precisão. Depois dos estaleiros desarmados, fica a nudez das paredes que resplandecem outra vez. Como quando eram novas. Sem medo se serem esmurradas pelo vento hostil que arroteia as sementes da maresia. Outra vez à espera de sedimentarem os sinais evidentes de uma decadência vagarosa. Até que seja tempo de obras públicas. Outra vez.


Fontaines D.C., “I Don’t Belong”, in https://www.youtube.com/watch?v=A17xOusHXIQ

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