23.6.20

Por linhas direitas (short stories #225)


          Não sei que nome usar no palíndromo que se habilitou no mundo. As pessoas evocam arremedos de justiça divina (“escrever direito por linhas tortas”), como se a empreitada não fosse atingível. Às vezes, parece que temos uma lente desfocada que traz o entendimento baço. Distraímo-nos com as irrelevâncias transformadas em matéria estrutural por gente desinformada. Se houver um módico de rigor e lucidez na medida das coisas, elas aduzem-se na sua simplicidade. Sem sermos apostrofados pela incúria, a nós se deve a inútil complexidade das coisas. Se desmatarmos as camadas em que se fingem as coisas, chegamos à sua medula, o cerne da simplicidade. Aprende-se que mesmo nas curvas mais sinuosas se consegue escrever por linhas direitas. Mais tarde ou mais cedo. E por mais que uma certa descortesia pela espécie possa espreitar pela escotilha, desconfiando do triunfo perene da lhaneza, ao cabo da demanda é o desiderato que se confirma. A complexidade enovela-se nas suas entranhas. Especiosa, esperneia seus múltiplos tentáculos que esperam enxertos de outras variáveis que adicionam mais complexidade, num turbilhão inacessível, o precipício mesmo à espreita. É como se fosse o poço da morte, a vertigem do ininteligível a coberto de aspirações eruditas. Os seus intérpretes acabam a falar em linguagem cifrada, todos fazendo de conta que se entendem mutuamente, quando apenas tornam mais densa e logogrífica a linguagem. Um enredo em que são surdos os que intervêm nas falas. Disfarçados atrás de nomes pomposos, mas inaptos para tirarem as medidas aos mínimos denominadores comuns. Tornam-se peritos em escrever torto por linhas tortas. Uma cacofonia. Até que, em estado catatónico, sem saberem o lado do poente, sucumbem ao apelo do regresso ao quilómetro zero. Não têm de reaprender a ler e a pensar. Mas quase. Essa é a serventia das linhas direitas. 


Is Tropical, “Calling Out”, in https://www.youtube.com/watch?v=nrNKAsoe33g

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