27.7.20

A pistola do rafeiro


Era um coldre podre, com buracos por onde podiam passar espadas de maior dimensão. Ele não se importava. Dele se dizia ser um pouco como um pária, mas ele não tinha ido ao dicionário ver o significado de “pária”. Os vestígios de boçalidade não ficam imersos numa cortina de fumo, onde possivelmente o pior de uma pessoa fique à margem da observação alheia. Ele também não sabia disso – e se lhe fosse dado a saber, não se importaria.

Não se podia dizer que era a desconfiança que dava o mote ao modo intempestivo e desagradável como falava com os outros. Aprendera a ser assim: uns pais agrestes, secos na fala, incapazes do menor sinal de afeto entre eles (e menos se diga deles para a prole), uns irmãos que tivera de tomar como lídimos inimigos, o trauma da escola, as amizades furtivas que nunca fizeram jus ao conceito de amizade, o interminável rol de contratempos, entre bebida, drogas, prisão, desamores, aleivosias várias que provavam a estultícia da amizade, de como não era possível confiar nas pessoas. Como ele sabia disso! Dera por si, e não poucas vezes, a admitir que se fosse outra pessoa, essa pessoa não confiaria nele. 

Não havia dia que não trouxesse por companhia uma pistola que comprara a um cigano que lhe prometera ser um negócio de ocasião. Como já se adivinhou, não era portador de licença de arma, que isso das leis sempre fora entendido como um luxo da burguesia que se armou até aos dentes com a prosápia da estabilidade e da ordem. Nunca usara a arma. No ecossistema que frequentava, os outros sabiam que não saía de casa sem a companhia da pistola. Dava estatuto; estava convencido que a arma de fogo granjeava o respeito de que, de outro modo, não seria credor.

Um dia, as calças puídas atraiçoaram-no. Do bolso decadente, o bolso esfiapado com a urdidura do tempo, a pistola evaporou-se. Foi numa noite de boémia. As cervejas bebidas já tinham passado da conta e, contava-se em surdina, ele fora protagonista de umas figuras tristes. Não deu conta que a pistola se dissolvera da sua posse, furtivamente escorregadiça pela perna anestesiada abaixo. Logo nessa noite, que uma peleja atiçada pelo destempero da embriaguez convocara a pistola para dirimir o pleito. Quando meteu a mão ao bolso, depois de vitoriosamente (mas antes do tempo) declarar vencida a contenda, confiando na vantagem da pistola, descobriu apenas a pele coberta de pelos que era sinal da perna. De pistola, nada.

Acordou, horas mais tarde, numa marquesa atirada ao acaso nos corredores da urgência do hospital. Sem três dentes e com um punhado de pontos cosidos no sobrolho. Meteu a mão no bolso roto. Nada de pistola. Agora, era apenas o rafeiro com três dentes subtraídos à força e um punhado de pontos pespegados no sobrolho. O pior foi ter perdido a pistola.

Vaiapraia, “Fogo Fera”, in https://www.youtube.com/watch?v=mTtns2P1KcQ

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