8.7.20

O angariador de fundo


Vinte e oito quilómetros e seiscentos metros. A pé. Nunca fazia um mapa dos trajetos que palmilhara. Só depois, na foz da jornada, quando mentalmente desenhava o tracejado pelas ruas da cidade, a ele vinha a imagem mental do entrecruzado que se desenhava no mapa (se o trajeto fosse desenhado num mapa de papel). 

Era assim todos os dias da semana, menos ao fim de semana e às quintas-feiras. (Às quintas-feiras fazia voluntariado numa associação que acolhia crianças com deficiências mentais.) Já perdera a conta aos pares de sapatos gastos nestas demandas que só parecem intermináveis antes de começarem e quando fazia a estatística da distância, na foz da jornada. Durante a função, não perdia o sentido de perseverança sem o qual os gastos esperados se fundiam no vazio. 

Ia de porta em porta em angariação de fundos. Em cada dia, os fundos angariados revertiam para uma organização de caridade diferente. Ele era uma espécie de mecenas que atuava como central que reunia e distribuía generosidade em favor das organizações que precisam da generosidade. Não precisava de agenda para saber a que dia correspondia uma certa organização de beneficência para a qual iria angariar fundos. Não precisava de mnemónicas para explicar os propósitos de cada organização de caridade. Nem desistia à menor contrariedade – e elas eram tantas, como podia atestar pelo número de portas fechadas quase sem justificação, numa flagrante exibição de boçalidade que, no fim de contas, não andava longe do retrato do lugar. 

Não podia falhar uma única porta. Uma porta não visitada podia significar uma oportunidade de financiamento perdida. Todos os cêntimos eram bem-vindos (não se cansava de apregoar, em jeito de agradecimento, sempre que um punhado de moedas era depositado à sua guarda, contra recibo para desconto nos impostos). Em suas deambulações, conhecia a amostra de população visitada como ninguém. Quase podia fazer uma dissertação em sociologia. E outra em psicologia, pois havia vezes (e não eram poucas) que se demorava à porta de alguém que precisava de falar. 

Ao deitar, na solidão do quarto alugado, sabia que não era visitado pela demora do sono. As maratonas diárias não deixavam lugar à insónia, ou a outras apoquentações menores. Como os maratonistas, o fundo era a sua perícia (e a proficiência do discurso e a persuasão). Era um angariador de fundo.


Gorillaz, “19-2000”, in https://www.youtube.com/watch?v=WXR-bCF5dbM

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