O efeito das palavras descafeinadas é como abjurar as cores do tempo. Não se esvaziam os armários para deles ficar uma moldura do vazio. Não é desse minimalismo que os poetas são mecenas. O seu peso sobrepõe-se à letargia da manhã. Derrotam a cortina baça que fundeia no pensamento e inventariam o amontoado de palavras de que poderá fruir um poema. No sindicato da poesia, os poetas não têm nacionalidade. Não obedecem às fronteiras (mesmo quando as fronteiras são imperativas). Há uma semelhança notável com os capitais: tal como estes, os poemas são entes insubordinados, sem que ninguém os veja transitam entre os países, sem respeito pelas fronteiras. Nasceram para serem rebeldes das fronteiras. Como os poemas são a materialização dos poetas (seus fautores), os poetas viajam no vagar intemporal e desprendem-se de pertenças. A única que admitem é o sortilégio das palavras, a sua quimérica matemática. No sindicato da poesia, desenham as estrofes que se candidatam a poesia estabelecida. Servem-se do sangue em ebulição e do compasso da alma. Congeminam-se no altar sublime onde tornam a medula em página arrebatada. Não admitem fórmulas usadas, nem convenções que devem ser deixadas ao cuidado da poeira dos manuais. Porque se sobrepõem às fronteiras, os poetas só admitem o hino da liberdade. Por isso é que são poetas. Não esperem deles que sejam procuradores de outros. Não esperem que aceitem comendas: não podem admitir um serviço à comunidade, o que os deixaria embebidos em responsabilidades de representação que desprezam. Os poetas sem fronteiras acusam o implícito dever de legarem as palavras às amplas latitudes despojadas de idiomas. Atiram-nas ao ar belo e esperam que irriguem ao acaso como se chuva fossem. Os poetas têm de escrever num idioma, é certo. O idioma não é sinal de pertença. É um acaso, ou um hábito sedimentado. Se os poetas não têm fronteiras, por que seriam reféns de um idioma?
23.7.20
Poetas sem fronteiras (short stories #237)
Groove Armada, “Superstylin’” (live at Glastonbury), in https://www.youtube.com/watch?v=gEKUKDsw0JU
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