Não baixo a guarda. Tenho a impressão que todos os rostos são desnatados. Não sei porque o meu é diferente. Arrumo a alma na tonitruante intempérie que tem dia marcado. Tirava-me do sério – para usar expressão popularizada – e seguia pela rua sem travar conhecimento com o fado. Se ao menos houvesse um anjo caído, nem que fosse com as asas fraturadas (sinal de decadência), podia ser a avença dos miosótis que orquestram a beleza circundante. Mas temo ser apenas um enredo, ou uma fábula sem animais por figurantes, uma vírgula à espera de sítio. Será de estranhar que o rosto se coalhe no oposto do sorriso? Vejo as pessoas, como se organizam quando são estranhas. Como a boçalidade, a desconfiança larvar, são mecanismos de defesa (isto sendo generoso, pois se for inato agrava o diagnóstico). Vejo como outras disfarçam o estatuto com sorrisos. Mas são sorrisos que se escondem numa máscara onde os corrimões do fingimento são biombo necessário. Não invoquem os sacerdotes da positividade constante, que esses me parecem tão ardilosos como os que se escondem atrás da boçalidade impenetrável. Nos degraus onde se cimenta um não-saber estar, as almas fundem-se na contingência de um fundo fiorde. Deitam as mãos às paredes íngremes, mas o musgo dominante atira-as constantemente para as águas álgidas. A menos que seja um pesadelo e as cortinas do medo se dissipem no estertor da hipotermia. Ainda se há de levantar o dia sem sombras, de modo a que fiquem translúcidos os rostos à medida de um corpo albino exposto à virulência da luz solar. De que adianta mostrar o que se não tem? Os esgares são instantes visíveis. Ultrapassam os rostos engenhados que sobem a palco espevitando com as esporas o dorso cansado em que se suporta o teatro inteiro. Não há momentos de lucidez, pois já nem se sabe o que é a lucidez. Os sorrisos, esses, ficam à consideração do acaso.
13.7.20
O oposto do sorriso (short stories #234)
The Breeders, “Blues at the Acropolis” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bWYnd__VTdM
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