17.7.20

O que ia a dizer que não é mentira? (Ou: quando julgamos que o eu é centrípeto, afinal o que importa são os outros)


Diriam os entendidos, os entediados com a patogénica modernidade, que a exaltação do ensimesmar descuida a pertença a um grupo. E a pertença grupal é o atestado de sanidade social que despoja o eu de uma centralidade que não lhe é devida. Em argumentação de idêntica cepa, dir-se-á que à entronização da lógica dos direitos (onde os direitos individuais são o Norte) se imputa parte importante do culto do eu.

Todavia, a um eu tão narcísico corresponde uma sua projeção exterior. O eu centrípeto precisa de reconhecimento. Por mais que ensimesme, a esse eu não é suficiente o autorreconhecimento. O eu é seguro de si mesmo; ele é o último bastião do seu próprio reconhecimento. As imagens que de si tem ficam guardadas numa moldura interior, zelosamente cuidada para não se encontrar no abismo que é a sua negação. A prova dos nove está fora de si, no reconhecimento que procura nos outros. Há, nessa medida, a projeção do eu para fora de si. É o lugar onde obtém o reconhecimento que se faz esteio do seu centrípeto lugar.

Neste processo catalítico, os individualistas são um paradoxo de si mesmos. Cuidam meticulosamente de si, como se tudo o resto fosse de si limítrofe, mas não conseguem prosperar no metódico ensimesmar sem o biombo dos outros onde eles são revistados. Os narcisistas só o são enquanto obtiverem respaldo dos outros, o que pode significar um pequeno reduto de pajens ou um numeroso exército de seguidores (dependendo da ambição de quem se ensimesma). Quem transborda o seu eu depende intrinsecamente dos outros. É esta esquizofrenia, porventura não admitida internamente, que os expõe às vicissitudes dos outros. A menos que sejam reclusos do que lhes é exterior (ninguém é eremita), o egocentrismo está ancorado nos outros.

Este é um espelho que desmente as profecias dos vigilantes dos maus tempos que nos consomem. Podemos ser cada vez mais ilhas, mas não somos ilhas isoladas. Somos uma constelação de ilhas intrinsecamente ligadas. Este é o cimento de uma pertença não voluntária, mas contingente. Mas uma pertença, em todo o caso: até os que se consideram ilhas refinadas, ilhas entre ilhas, intuem que o seu reconhecimento depende de outras ilhas. É uma pertença contingente, e oportunista, não genuína.

Nick Cave & the Bad Seeds, “Jubilee Street”, in https://www.youtube.com/watch?v=xCxHvNl9MmQ

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