16.7.20

Em surdina


As tuas palavras são documentos históricos. Desembaraçam o verbo puído, que se torna a resplandecente versão do dia apetecido. Pelas tuas mãos, as palavras dançam. Não se confundem com o nevoeiro que embacia o entardecer, o nevoeiro a destempo. Não se confundem com os meãos desvios da fala que armadilham o consequente pensar. São belas, as tuas palavras. Em surdina entoadas, contendo em si a clave de sol que as torna musicais.

As tuas palavras tornam-me alma. Agigantam-se no horizonte onde se depõe o meu olhar, em espera pelo ocaso que apenas pressente o dia sequente. Murmuradas ao ouvido, como lauto manjar que se apessoa na vindicação dos amplexos em que somos simbiose. Um traje de gala, poemas falantes sem sede de métrica, candeia que irrompe na escuridão, desfazendo as trevas contra a fina umbria dos pesadelos em que se consomem. Desenhando os deslimites de que somos inventores. Não digas a ninguém. Conservamos a patente no cofre onde se emolduram os segredos. Tanto é o que nos basta.

Em surdina, dizes o que deve ser dito na impureza das horas. Nada, é o que dizemos aos lugares-comuns. Reservamos o melhor de nós para o que importa – e o que importa são os dias todos, inteiros, fundidos no pergaminho luxuoso em que se compõe o fado no esteio de um passado nosso. Contamos os segredos que mais ninguém sabe. Em surdina, não se erga um ouvido intruso e o segredo deixe de o ser. Contamos, numericamente falando, os segredos que já contámos. Como se fossem um sextante das águas que vamos descobrir só nossas.

Não precisamos de atlas. Não precisamos de enciclopédias que ensinem a beber no mirífico destino das palavras. Dizemo-lo sem rodeios, imunes às tergiversações, com a luz embebida no sortilégio da manhã. Às vezes, o silêncio confunde-se com as vozes em surdina. O silêncio é o ersatz da surdina, dispensadas as palavras tonitruantes que agridem a benevolência dos deuses em que se transfiguram as nossas almas. 

Dizemo-lo: em surdina, as palavras ganham pose poética. E sabemos que a poesia é tudo, como conta, em contagem crescente, o uníssono em que nos tornámos. Pois é em surdina que apaziguamos os tornados, desfazemos as trovoadas medonhas a maresia, cuidamos das marés vivas em forma de instalação artística. E traduzimos as iracundas palavras nas estrofes aformoseadas com o verbo selado pelas bocas que se beijam.

The Cure, “Close to Me”, in https://www.youtube.com/watch?v=BjvfIJstWeg

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