29.7.20

O xadrez cego


No marmoreado do chão, uma espécie de piquenique dos loucos: os dedos ávidos ensaiam movimentos com as peças que se congeminam, dilacerando o silêncio que não foi convidado. O vento tardio empresta um vestígio de drama, apesar de os convivas continuarem emparedados no silêncio. As peças movem-se, ao acaso, no xadrez que se convencionou não obedecer a regras.

No chão marmoreado valem as desregras avalizadas. O primeiro esboço de procedimento é imediatamente desmentido. E nem é preciso violar o silêncio sepulcral: os olhares ríspidos contam como negação veemente da tentativa de regras. As peças movem-se com o pergaminho da sua liberdade; é como se tivessem vontade própria, apesar de comandadas pelos dedos imprevidentes dos convivas. 

Se lhes perguntassem, diriam não saber ao que tinham vindo. Diriam não saber como tinham chegado àquela clareira da floresta onde o chão era feito de um mármore intransigente. Talvez tivessem sido enfeitiçados, talvez uma impercetível picada no bolbo da orelha, a letargia a fazer efeito sem demora. Foram convocados sem convocatória. Eram apenas passageiros de um sonho alheio, manobrados nos interstícios de ruas aveludadas pelo destempo ilógico do paradeiro de quem tutelava o sonho. O jogo tinha semelhanças com o xadrez, descontando o chão marmoreado que não era um simulacro do tabuleiro onde se entretece o xadrez, as peças resgatadas a uma palete onde tinham representação todas as cores do arco-íris e as desregras caucionadas.

Alguém ergueu a voz, fazendo estilhaçar o chão marmoreado. Afinal, todo aquele mármore era uma fina camada de verniz deitada sobre um chão baldio. Os outros não reagiram à voz. Continuavam mergulhados no silêncio epistolar. A voz desfiava o silêncio instituído, enquanto os dedos prescientes continuavam a mover as peças do xadrez. O provocador queria dizer algo, mas a voz balbuciava umas sílabas que não desenhavam palavras inteligíveis. Os outros só queriam continuar o jogo, obedientemente seguindo as desregras. O silêncio não foi derrotado, nem por causa dos melhores esforços do provocador. Talvez quisesse dizer que não podiam continuar reféns do silêncio, que os Homens foram feitos para a fala. Talvez quisesse apenas advertir que mais à frente havia outro apeadeiro onde um jogo mais apetecível os esperava. 

Não lhe deram ouvidos. Disfarçaram surdez, só para rimar com o silêncio tangível. Se calhar, o apeadeiro mais à frente era um lugar contumaz onde as regras seriam repostas. 

Lianne La Havas, “Weird Fishes”, in https://www.youtube.com/watch?v=LdbHO_KhCig

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