(Excurso – ingénuo ou irónico, fica ao critério do leitor – sobre a ontologia da produção)
Quando são criadas, as empresas querem vender o máximo de mercadorias. Só o conseguem se a mercadoria tiver qualidade e se arregimentarem uma clientela disposta a pagar o preço. A qualidade da mercadoria deve ser merecedora do preço. Quando são criadas pelos seus fundadores, as empresas querem ter lucro. Sem lucro não sobrevivem, não conseguindo pagar salários (e o salário do proprietário, que é o lucro). As empresas e quem lhes compra mercadoria são interdependentes.
A narrativa dominante entre os lúcidos analistas do tempo hodierno é que somos, na qualidade de consumidores, enfeitiçados pela lógica do mercado. As empresas mais requintadas servem-se de ardis para nos tornarmos reféns do consumismo (uma das piores maleitas deste capitalismo que desalma as pessoas). As tentações cercam-nos por todos os lados. Se não formos autónomos e não soubermos resistir às tentações, empenhamo-nos no vício que as empresas e suas mercadorias instalam na nossa vida. Elas querem que sejamos mais e mais consumidores. Que gastemos mais dinheiro na compra de mercadorias. Que engrossemos o lucro (pornográfico, diz-se) das empresas que só se interessam por pessoas enquanto forem consumidores.
Às vezes, é possível virar esta narrativa dominante do avesso. Por exemplo: em dia de aniversário, as empresas distribuem prendas pelos consumidores que fizerem o obséquio de as frequentar nesse exato dia. São os descontos “extraordinários”, o “pague um e leve dois (numa gama selecionada de produtos)”, o “compre hoje e comece a pagar daqui a x tempo”, o “compre hoje, nós pagamos o IVA”, etc. Em dia de aniversário, as empresas não só praticam estas liberalidades como pagam a publicidade que leva a mensagem ao destinatário.
Ora, isto é o contrário das convenções (e da análise dos lúcidos analistas do tempo hodierno). Estamos habituados, em dia de aniversário, a receber presentes de familiares e amigos. As empresas viram o uso do avesso: são elas que oferecem prendas aos clientes. Dirão os desconfiados, habitualmente de pé atrás com as liberalidades dos timoneiros do capitalismo, que as empresas não dão ponto sem nó: esta generosidade fora da agenda é um estratagema para angariar clientela; ou, na pior das hipóteses, para trazer mais clientela às lojas no dia de aniversário, fazendo com que o aumento da receita mais do compense a generosidade ostentada nas campanhas de aniversário.
Seja como for, o uso fica do avesso quando é uma empresa a celebrar o aniversário. Qual seja a intenção que atrás se esconde, ou se a generosidade exposta é apenas um biombo, é do domínio da especulação. A menos que se pergunte diretamente aos empresários e eles respondam com a verdade.
(E a verdade esperada por quem perguntar, o que torna a dilucidação mais complexa – e subjetiva.)
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