O traumático descoser da madurez do dia: as lentes baças não queriam mais dia de tanto o saberem radioso. É daquelas coisas que se sente quando o bom em excesso se banaliza, perde propriedades. E, contudo, havia muito por fazer. Houvesse tanto dia por percorrer. “Não há problema. Temos mais dia amanhã”, disseste. “Eu sei. É esta prisão do tempo que se precipita sobre mim. Já sabes como é.” À medida dos veios que imprimem cor à paisagem, como se fosse um resgate à monotonia que se exacerba no caudal da extinção. Os dias não são iguais. O sangue não se repete nas veias que conhecem os dias diferentes. Podia-se testar a hipótese da polissemia da identidade, espartilhada por várias identidades – como se houvesse lugar a vários pseudónimos. “Terás a marca registada do caminho errático?”, perguntaste com alguma complacência à mistura. “Não sei. Não é consumição que sirva de combustível. Sou assim e aprendi a sê-lo.” O lado contrário da moeda espera pelo modo useiro de ver as coisas. Às vezes, os olhos desaprendem o que poderiam aproveitar se tivessem cuidado, se não se apressassem na aridez da paisagem habitual. É o estigma do indígena: acaba por desconhecer o lugar a que diz pertencer. São avulsos os modos de que se compõe o dia. Não se espere de uma véspera aquilo que se tem como provável no dia que vem a seguir. Um pressentimento não passa disso mesmo. Se os vulcões e os sismos se fizessem anunciar, haveria menos vítimas? Ninguém sabe. Não cuidemos das impossibilidades. Cuidemos do lugar presente sem ter por presente o lugar que será vindouro. Pode-se ser nómada sem deixar de ser sedentário. As cidades despojam-se de vento para a extinção dos impostores. Às vezes (talvez muitas vezes), os impostores são os que reivindicam para si o domínio do verídico.
2.7.20
Errático (short stories #231)
Iggy Pop, “Candy”, in https://www.youtube.com/watch?v=6bLOjmY--TA
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