No guarda-chuva, depois de uma tarde chuvosa, as gotas retidas como se fossem um exército de compaixão, à espera de se evaporarem. Era de persuasão que se falava, a afronta já entrevada por inutilidade com patente selada. As pessoas falavam de êxito, e eu perguntava se elas sabiam conjugar a palavra felicidade. Palavra que rima com quimera, uma metáfora constante que se enreda nos labirintos em que nos deixamos enredar, dando-nos gratuitamente ao supérfluo, na convicção estrénua de que as distrações o não são.
Podia ser que os dias repetitivos desmatassem o verniz que embacia a genuína linhagem. Em vez de um arvoredo inexpugnável, matriz de uma idílica floresta, haveria um largo planalto ladrilhado pela aridez. Os penhores do desenraizamento postulam a ascese, exigem uma desconstrução completa. Como se tudo tivesse que ser liquefeito numa constelação difusa de sonhos e pesadelos, ficando à espera de um aforismo certo que fosse a sinopse fundadora da alvorada em espera. Contrariando os cânones estabelecidos, a desflorestação era imperativa.
Às vezes, impetrava-se uma erupção vulcânica, a lava espalhando-se pelo todo visível. Quase como se fosse possível caiar as paredes para esquecer o pano de fundo que delas se fazia cenário. Por respeito aos metódicos construtores do edificado, não se traduzia o desejo para não ser levada a pleito acusação de crimes sem defesa possível. Há quem prefira perseverar no esgotado sistema por onde circula o sangue atormentado. Há quem se entregue, sem remissão, ao tabuleiro onde se enquistam as peças exauridas de um jogo pútrido. Preferem conservar o património estabelecido, apenas porque é património e é estabelecido, recusando todas as interrogações que possam acossar a imagem entronizada. Presos a aforismos caducos, reféns de uma inércia que condescende com a mesquinhez dos espíritos. Mortos, sem o saberem.
O deserto povoado pela desflorestação não é intransigente. Pode ser espartano, austero nas palavras debitadas, um quadro de cores desbotadas. Pode desmentir os aforismos consensualizados – mas quem nunca esbarrou numa página à espera de viragem? Quem nunca se cansou do tempo sempre semelhante? Esta era uma desflorestação que cuidava de assistir o parto que deita a vida no acorde da reinvenção. Como era o caso das paredes caiadas, a alvura a disfarçar toda a podridão acastelada no seu avesso.
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