9.7.20

As bocas deixaram de mentir


O esconderijo onde as metáforas se congeminam. Uma marca registada dos tempos que se fizeram diferentes. À medida do fogo que se ateou na inverosímil espessura de uma gramática singular. 

As bocas falam e não se veem. Não se distingue quando mentem ou falam a veracidade. Os empenhados cultores da verdade, habituais penhores da objetividade, acotovelam-se no logro do desassossego. Não podem exercitar a perícia de exegetas da mentira através dos sinais perfilados na geografia das bocas. Dantes, protestavam contra os véus que se abatiam sobre os rostos que cumpriam os preceitos das autoridades canónicas e se escondiam da intrusão dos olhares. Eram contundentes na censura da seletiva ocultação, esgrimindo argumentos (convenientes) que os colocavam em antinomia com a reificada propensão para a desigualdade de géneros. Adestravam-se na contumácia da sua impostura. Agora, o tempo extravagante abateu-se sobre as suas cabeças. O imperativo das circunstâncias terçou a ocultação de todos os rostos, até dos seus. Engoliram a exprobração em seco.

As bocas escondidas escondem mentiras – dir-se-á, em confissão do propedêutico apocalipse que se apoderou do atlas total. Os peregrinos que se importunam com a teoria geral da mitomania não se reconhecem no oposto lugar, aquele onde os espinhos da mentira são desarmados para entronizar a soi-disant verdade. É um comportamento que é todo um programa de intenções. Os que exercem a desconfiança como princípio metódico são os primeiros a serem merecedores de desconfiança. É neles que cairá a máscara que esconde a boca que se alimenta da mentira. Às vezes, os contratempos são heurísticos. 

A boca escondida não se mostra no habitual cortejo que combina sinais opostos. As bocas esventradas por incúria, as bocas impecavelmente apessoadas, as bocas que transitam na expressividade, as bocas imateriais que destilam impassibilidade, as bocas que mentem e as bocas que contam o verídico, as bocas que mentem por contarem verdade como as que são verídicas ao narrarem a mentira, e as bocas de silêncio pegado e as bocas de fala prolixa. Nada disso seria importante se não estivéssemos reféns da excecionalidade que nos acossa. A menos que a exceção se torne regra e em vez da antecâmara do apocalipse passemos a navegar no uso contínuo. Para as bocas deixarem de ser um repositório de estados de espírito e as palavras por si entoadas terem sempre um filtro. 

Mas já não era assim?

Beck, “Colors”, in https://www.youtube.com/watch?v=WRCA_Fo0rWA

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