30.7.20

Desafio o desafio a ser desafiado (esgrima)


Prescindo da máscara. Prescindo do arnês. Prescindo da espada, mesmo sabendo que à esgrima se deita o corpo em resposta ao desafio desalfandegado. Prescindo de esconderijo. Não é bravura demencial, ou ato impensado de coragem narcísica. Prescindo de ajudas exteriores, conspirações divinas, jogos com emolumentos de fingimento – só preciso das minhas mãos.

Deixo vir o desafio de frente, com o peito aberto que diz ao desafio que o vai desafiar com a humildade de quem não é louco. Embebido na prosápia própria de quem se constitui desafio, o desafio não saberá que ninguém o protege de um desafio. É o desafio ao desafio. A viagem de quem não se esconde do desafio e adivinha a displicência inata ao desafio. E se o desafio for virado do avesso com a apostilha de um desafio que lhe seja desafio?

Para o livro de atas vertem-se os termos do propósito: desafio o desafio a ser desafiado, para entender se, uma vez desafiado, o desafio derrota o desafio que se lhe coloca. Não é obliteração de responsabilidades – dir-se-ia, apenas um ardil meu para escapar do desafio exposto pelo desafio, devolvendo-o a um desafio inventado à pressa só para ao desafio original não ser exposto. Diria, em minha defesa: é um exercício propedêutico, para apurar se o desafio é temível ou se vem a sua fragilidade ocultada por uma camada de verniz que o esconde da sua autêntica linhagem. 

(Podia acrescentar, em abono da legítima identificação de propósitos: o exercício propedêutico a que o desafio seria submetido pode enfraquecê-lo. Ao esbarrar no seu próprio desafio interior, o desafio consumir-se-ia, exangue. Observaria o desafio em ação, estudando as suas cartadas.)

Depois de ser testemunha do desafio desafiado pelo seu interior desafio, estaria preparado para o desafio. Preparado a empunhar as armas que fossem necessárias, esgrimindo sem armas que não fossem as que de mim se arvorassem réplicas necessárias. Não seria sabedor do resultado do pleito. Ninguém ousa a esgrima com um oráculo entre mãos. O desafio que se soergue sobre todos os desafios é o de não haver pressentimento válido. Por dentro do desafio, torna-se maior o desafio da indeterminação. Da mesma forma que o desafio era desafiado a lidar com o seu próprio desafio, o desafio em si daria em ignição um desafio prévio. 

Ficaríamos empatados, eu e o desafio, num palimpsesto de desafios.

The Blinders, “Black Glass”, in https://www.youtube.com/watch?v=_vzzrppleDs&frags=pl%2Cwn

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