Dionísio olhava demoradamente para o gargalo da garrafa, à falta de vinho, que se esgotara. “Se ao menos houvesse uma donzela por quem pudesse fazer uma serenata...”, suspirava, melancólico. A Dionísio não era dado a lembrar que não sabia ler uma pauta de música e a voz se prestava a qualquer função menos ao canto. Não fosse a embriaguez para compensar a frustração de uma vida errante, Dionísio teria a compensação do desamor como frémito para a serenata esboçada em pensamentos.
Ainda por cima, chovia. Dionísio estava encharcado, mas não dava conta. Era a anestesia etílica – afinal, o que demandava para fruir as desavenças com a vida, os maus encontros que foram estiolando a cartografia da sua existência. “Podia fazer uma serenata!”, exclamou no pesar do estado lisérgico. Houvesse quem lhe segredasse que a serenata exige uma diva. E, ainda por cima, chovia. Mandam os costumes que não se façam serenatas à chuva, não fiquem arruinados os instrumentos e engripados os tenores.
Dionísio ripostou (queria provar, num acesso iracundo de quem quer ser espetador de si mesmo, que não estava ébrio e tinha condições para o raciocínio linear): “mas há aquele filme icónico dos anos cinquenta, notável pela cena da serenata à chuva.” No termo da frase homérica, esvaziou-se o êxtase. Não percebera ao certo a proclamação. Chovia, era certo. Mas nem tinha propensão para a música, nem uma mão cheia de guitarristas a tiracolo, nem a voz era melíflua. E ficou por aqui no diagnóstico. Intencionalmente. Não quis concluir o raciocínio com o episódio em falta: não há serenata sem diva para homenagear (ou cortejar) e ele não tinha uma diva a preceito.
“Não vem daí grande mal ao mundo!”, desviou-se do sentido apoplético. “Há chuva, há serenata. Tenho dito. Te-nho di-to!” Assim como assim, a imagem de marca era o tal filme icónico dos anos cinquenta: uma serenata à chuva. Se há serenata, há chuva. E Dionísio tanto se enovelou no jogo de palavras que conseguiu apagar o desamor contínuo do mapa das angústias.
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