8.4.05

Natalidade profiláctica

Um país tem que produzir consumidores,
ou não faz sentido produzir o que quer que seja.
Salvato Trigo, reitor da Universidade Fernando Pessoa

Na abertura de um congresso em Ponte de Lima sobre o desenvolvimento sustentável na região do Minho, o meu reitor proferiu aquela frase. Sustentou que, na região do Minho, o motor de desenvolvimento é o ensino superior. Lamentou a falta de cultura que grassa entre nós, o que coloca Portugal na cauda da Europa quando se observam os dados estatísticos relativos ao ratio de estudantes universitários por habitante. Insurgiu-se contra a iliteracia que nos domina, uma iliteracia que ainda olha de soslaio para o valor acrescentado das universidades. Com razão, zurziu nos “intelectuais de barbearia e de café” que disseminam enorme sapiência pelos fóruns de jactante popularidade. Sem parar, viu na ocasião o ensejo para criticar os excessos do mercado, causticando o “neo-liberalismo” que se esquece dos valores humanos fundamentais, que espezinha a cultura e tece pontes com uma nova aculturação que renega a espessura civilizacional que vem do passado.

Foi a este propósito que o reitor se lembrou de um episódio que demonstra como os excessos do mercado são perversos. Apelou à audiência para não se acomodar à cultura anti-maternidade que emergiu em certas empresas (o exemplo mais conhecido: o BCP). No seu diagnóstico, o caminho trilhado era consequência daquilo a que apelidou “yuppização da sociedade”. A emergência de gestores que só se preocupam com a produtividade, a racionalidade económica, o curto prazo. Colocando entraves ao recrutamento de mulheres, porque elas engravidam e podem ser um grão na engrenagem do sagrado objectivo da produtividade. Ou, quando elas são recrutadas, levando-as a compromissos de honra que as impedem de engravidar. O farol de um genocídio antes do tempo, a desertificação humana de um país. Foi então que assegurou que sem produção de consumidores deixa de fazer sentido sermos produtores de qualquer coisa.

Não sei se o meu reitor vai ler este texto. Como é um homem cultor da tolerância, decerto compreenderá a minha discordância. Por três motivos. Primeiro, a retórica dos excessos do mercado. A ideia é popular: as empresas, no afã do lucro, adoptam medidas que atropelam os direitos da pessoa. Acontece com as empresas que contratam mais facilmente homens do que mulheres, receando que estas decidam engrossar as estatísticas da natalidade, deixando temporariamente de dar o seu contributo à produção da empresa.

Era bom que nos convencêssemos que a riqueza é gerada pelas empresas. Elas não são o inimigo. São elas – com ou sem “excessos de mercado” – que criam emprego, que distribuem riqueza, que prestam serviços e produzem bens que alimentam o bem-estar das pessoas. Se as empresas são acusadas de excessos que espezinham valores humanos, uma pergunta é inevitável: quem seja afectado pela entorse dos seus direitos pode ou não recusar-se a trabalhar nessa empresa, procurando emprego noutro lugar? É difícil, lamentam alguns. Pois é, por culpa de uma regulamentação laboral muito rígida. Fosse mais fácil despedir pessoas, e seria mais fácil transitar de emprego em emprego, seria menor a taxa de desemprego.

Em segundo lugar, a percepção de que cada um tem o “dever social” de contribuir para a continuação da prole. Para quem tem uma filosofia individualista, a prescrição desta solução indeclinável soa a agressão. Porque há a difícil convivência com a ideia de que todos temos obrigações que resultam da nossa inserção na comunidade. Uma delas será o dever de contribuir para a sobrevivência da sociedade sem crises demográficas que, mais tarde, provoquem dificuldades gigantescas (uma segurança social insustentável). Porque motivo todos temos que dar o nosso contributo para a proliferação da gesta lusitana? Não será uma agressão intolerável à forma de ser de cada um, sobretudo para os que adoptam um modelo de vida que não passa pela formação de um agregado familiar?

Há pessoas que não querem casar. Há pessoas que não querem ter filhos. Há comportamentos sexuais alternativos incompatíveis com a maternidade. Outros contentam-se com o filho único que geram. Dizem, insuficiente para alterar a pirâmide demográfica que se inverte a cada passo. Podemo-nos acusar de irresponsabilidade, de sermos os culpados, com a deriva individualista, de arrastar o país para uma crise sem precedentes? Não, desde que cada um saiba assumir a sua quota-parte de responsabilidade. Não, desde que haja sapiência para encontrar soluções alternativas que atenuem os problemas que se avizinham.

Em terceiro lugar, uma nota económica desmente a afirmação do reitor. Concordando com ele, quando asseverou que a economia tem muito a ganhar se ficar permeável à cultura, também o inverso é verdadeiro. Um país pode estar mergulhado numa crise demográfica sem que isso implique o desaparecimento das empresas que produzem bens e serviços. Ainda que o consumo do país esteja condenado a diminuir, as empresas podem manter – ou mesmo aumentar – a sua produção. Porque ela pode ser vendida no estrangeiro, em países onde a natalidade seja superior à mortalidade, países ainda carentes na satisfação de necessidades de consumo e que são mercados atractivos. Saibam as empresas encontrar essas oportunidades, é o desafio que têm pela frente. Que é independente de considerações demográficas.

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