25.4.05

E depois, vão pedir emprego ao Vaticano?

Acusam a igreja capitaneada por Ratzinger de ser a emanação do mais grotesco conservadorismo. Numa das primeiras exibições do novo pontificado, em reacção a um presente envenenado do governo espanhol (a lei que legaliza casamentos entre homossexuais), o Vaticano reagiu de forma enérgica. Apelou aos católicos que trabalham em conservatórias do registo civil em Espanha para se recusarem a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. À boa maneira da cartilha de Che Guevara, a igreja convoca à objecção de consciência. Levando ao limite as consequências da sua recusa – mesmo que isso implique o despedimento.

Há alguns aspectos curiosos nesta manifestação desorientada do Vaticano. Primeiro, em bom rigor, não se trata de objecção de consciência. Quando alguém invoca objecção de consciência para uma omissão, esse é um acto puramente individual, ditado pelas convicções pessoais de quem se agarra ao argumento da objecção de consciência. Nunca o será quando o incitamento vem do exterior, de uma qualquer entidade a quem interessa o resultado da objecção de consciência. Aí a objecção de consciência deixa de o ser – individual, vinda de dentro para fora; será colectiva, imposta de fora para dentro.

Poderão os defensores da igreja argumentar que se trata de um obstáculo gerado pelas convicções da fé, logo uma objecção de consciência. Não o é no sentido puro da expressão. O que vemos é a hierarquia eclesiástica a tentar orientar a consciência dos católicos, mais uma vez negando a carta de alforria para a consciência individual. São consciências manietadas, as dos católicos. Mesmo neste insólito domínio da objecção de consciência (para a tradição eclesiástica), os crentes devem seguir as orientações superiores, que comandam os cordelinhos das suas consciências. Isto não é objecção de consciência. É ver nos católicos simples marionetas que são manobradas ao sabor das conveniências tácticas da igreja.

Segundo comentário: não é usual ver a igreja apelar à desobediência da lei. Talvez porque ao longo da história tenham sido episódicos os momentos de tensão entre o poder secular e o poder político, a igreja sempre fez parte do necessário respeito da lei. É estranho ver na igreja um foco de perturbação social. Deito-me a adivinhar o que aconteceria se os católicos espanhóis com empregos em conservatórias do registo civil correspondessem em massa ao apelo do Vaticano: um ambiente de desobediência civil que ofusca o bom funcionamento do Estado de direito. Para uma instituição que se diz conservadora, que aceita a necessidade das regras de convivência social, que tem pautado a sua conduta pela obediência da lei, ver agora a igreja a apelar ao não cumprimento da lei é sinal de estranheza. Mostra que a igreja muda de posição quando as regras vão contra os seus dogmas. Mergulhando numa incoerência de acção que era até agora desconhecida.

As voltas que o mundo dá! Quando os críticos desconfiam do novo pontificado por ele tresandar a conservadorismo, afinal a igreja mostra que aprendeu a lição da modernidade. Nisto de desobediência civil, parece ter sido boa aluna da cartilha revolucionária ao estilo Che Guevara. Quem diria? Afinal a igreja não é tão conservadora como apregoam as carpideiras de serviço. É revolucionária nos instrumentos escolhidos para que os seus dogmas não sejam destruídos por leis (para a igreja) ímpias.

Em terceiro lugar, falta saber se a igreja assume a sua responsabilidade na instigação à desobediência civil. Os clérigos reunidos no Vaticano tiveram a sensatez de avisar os crentes que, ao dobrar da esquina, pode vir o desemprego. Presume-se que seja a própria a igreja a reconhecer a justa causa do despedimento, para os casos em que a objecção de consciência seja utilizada. E que leve até ao fim a sua coerência: que dê emprego, nunca com remuneração inferior, aos católicos que tiverem obedecido ao chamamento do Vaticano e, pela desobediência à lei, tenham ficado no desemprego.

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