5.4.05

Michel Vaillant e a intemporalidade

O ritual de sempre, a compra do Autosport às segundas-feiras – a bíblia semanal. A partir de ontem, e durante algumas semanas, o Autosport traz um álbum das aventuras de Michel Vaillant. Ontem foi o primeiro: “o homem de Lisboa”, uma aventura que evoca os tempos gloriosos do Rali de Portugal, quando a prova era o melhor rali do mundo. Foi um duplo regresso ao passado.

Mergulhar nas recordações da adolescência que começava, daqueles anos em que descobria que o automobilismo era o desporto preferido. Os álbuns de banda desenhada de Michel Vaillant, um herói das corridas de automóveis, eram consumidos com sofreguidão. Descontava os laivos romanceados que tingiam a realidade com uma nota fantasiosa. As aventuras de Michel Vaillant e seus parceiros são o mundo dos bons e dos maus, em que os bons acabam sempre por levar de vencida os maus. Era o retrato do ambiente das corridas que me prendia a atenção, numa idade em que a banda desenhada cativava o meu fascínio e a competição automóvel tomava conta de mim.

Lia de fio a pavio os álbuns de Michel Vaillant. Parava para reter certos pormenores, algumas passagens mais espectaculares, momentos auge das histórias. Na inocência da idade, levava comigo para a cama, nos minutos que antecedem o sono, o sonho de ser uma espécie de Michel Vaillant. Não pelos louros da vitória que o herói francês arrebatava. Apenas o sonho de ser protagonista do mundo mágico das corridas de automóveis, a adrenalina de conduzir um automóvel de competição no limite da aderência, saber-me entregue nas mãos das condições aleatórias das corridas – entregue aos caprichos da mecânica, exposto aos erros dos outros pilotos. Não era pelo glamour retratado por filmes que narram histórias passadas no mundo das corridas. Nem sequer pela intriga que alimenta o enredo das histórias de Michel Vaillant, com as manobras desleais dos maus da fita.

No regresso ao passado, a história ontem publicada pelo Autosport teceu outra ponte com o passado, um passado não tão remoto. A história de Michel Vaillant de ontem passava-se no Rali de Portugal, quando o rali tinha cinco dias, percorrendo as duras estradas de terra do centro e do sul do país. Logo num fim-de-semana em que decorreu um Rali de Portugal em versão “donwgraded”, para satisfazer as exigências dos organizadores do campeonato do mundo de ralis, numa tentativa para fazer regressar a prova ao calendário do campeonato após três anos de ausência.

Ler a história de Vaillant serviu para recordar alguns dos momentos memoráveis emoldurados no álbum das memórias. Do baú das memórias, o registo contabilístico: desde 1983 apenas faltei a um Rali de Portugal – aquele que foi realizado no ano a seguir à exclusão do campeonato do mundo, há três anos. Talvez sinal da decepção que invadiu os adeptos do evento ao perceberem que foi a inépcia dos organizadores do rali que o pôs fora do calendário, senti a necessidade de um ano de nojo que me trouxe a ausência de uma prova que via órfã de si mesma.

Tirando esse ano, foram anos a fio a seguir um ritual bem estudado. Anos e anos a calcorrear quilómetros pelas estradas do país, para seguir os carros nas derrapagens controladas. Anos de banhos de poeira, a poeira entranhada no corpo só libertada por um banho minucioso. Outros anos foi a lama que reinou, com a chuva impiedosa a encharcar os ossos e a lama vomitada pelos carros, nas suas acelerações frenéticas, a pintar as roupas com um castanho viscoso e desconfortável. Nada disso obstava a que um grupo de amigos fiéis ao evento se reunisse, ano após ano, para alimentar os prazeres da alma com a coisa decerto corriqueira de ver carros numa correria louca palmilhar os quilómetros de estradas florestais cheias de pedra solta e de sulcos que escalavravam o piso. Histórias que davam para encher páginas a eito. O convívio que tingiu amizades que já vinham de longe; os lugares recônditos que só as estradas de acesso ao rali davam a conhecer; um Portugal desconhecido que foi sendo visitado porque havia um rali para ver; as comezainas nos momentos de paragem; as aventuras nocturnas, noites mal dormidas no meio de uma gélida serra de Arganil, com as fogueiras espalhadas pelas colinas emprestando uma magia que fazia parte do rali.

Outrora escrevi que revisitar o passado é tempo perdido. Há momentos em que é difícil resistir à tentação de resgatar os momentos inesquecíveis que vêm de longe, que trazem recordações gratas que são o património genético do bem-estar que se assenhoreia de nós no tempo presente. Basta encontrar o pretexto certo. Algo que o Autosport conseguiu com a iniciativa que começou com a edição de ontem.

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