Tomamos uso de certas expressões, parte integrante do nosso património linguístico. São usadas de forma maquinal, sem que se elabore no seu real significado. A certa altura, estas expressões idiomáticas vêm o seu sentido pervertido. Não é aquilo que as palavras transmitem, no seu sentido literal, mas aquilo que a voz popular se foi habituando a dizer. Sem que haja correspondência fidedigna entre as duas coisas. Perde-se o fio condutor dos vasos comunicantes da linguagem. Através dessas expressões idiomáticas dizem-se coisas que não são o espelho da realidade.
“Vida de cão” é uma dessas expressões. Habitualmente diz-se que uma pessoa tem vida de cão quando é exposta a padecimentos que a colocam no limiar da miséria (quando a expressão é usada com um referente materialista). Demonstrando um estado de alma, alguém tem vida de cão quando a infelicidade lhe bateu à porta e se recusa a visitar outras paragens. “Vida de cão” têm as pessoas que marcaram encontro com o desamor. Aqueles que estão eternamente descontentes – com o mundo, com os outros, mesmo com a sua própria pessoa – também deixam verter a lágrima furtiva acompanhada da inevitável expressão, “vida de cão”.
Todavia, olhando às palavras, ao seu significado, a expressão idiomática encerra um equívoco. Fica a pergunta: porque se convence o povo que os cães têm uma vida de mortificação, de sofrimento, tingida pelas cores da infelicidade? Serão os canídeos os proscritos, os desalinhados do mundo vivente, os perseguidos pelo fel da desfortuna? Basta olhar em redor para desmentir a ideia. Os cães têm vida regalada. Quer os “cães de companhia”, quer os “cães vadios” (mais duas expressões idiomáticas que davam pano para mangas; primeiro, pela distinção: uns têm dono, e por isso são emproados à condição de animais “de companhia”, a dos seus donos. Os outros, por não terem dono nem um tecto que os acautele dos reveses climatéricos quando dormem, logo são “vadios”, como se um vadio se encaixasse no paradigma do cão sem dono).
Os cães têm uma vida invejável. Sobretudo para quem gostaria de viver uma vida menos absorvente, mais entregue ao lazer, menos ocupada com as minudências das coisas pequenas que distraem dos sentimentos que nos deviam preencher por dentro. Os cães não têm essas preocupações. Dormem horas a fio, sem agenda para cumprir. Quando pensamos nos “cães de companhia”, não há receios quanto à falta de sustento – a comida chega sempre a horas, e há guloseimas que os donos oferecem em complemento. Os afagos fazem parte do seu bem-estar – e do bem-estar dos seus donos. Há nesta reciprocidade um mar de fortuna que torna a vida de muitos canídeos o objecto de salutar inveja para tantos humanos. E, no entanto, convencionou-se que é a “vida de cão” que retrata uma vida abaixo da pobreza, alcantilada no remoinho do infortúnio.
Mesmo que a expressão idiomática tenha como referência a vida dos “cães vadios”, o equívoco não se desfaz. Ao comparar a vida destes cães com os que têm um tecto sobre a cabeça, a conclusão de que os “cães de companhia” são uns privilegiados. Não significa, contudo, que os “cães vadios” sejam assoberbados pela desventura. Estão mais expostos à adversidade: os maus-tratos de bestas humanas, prontas a cobardemente sacrificar animais como expressão da nulidade expressa na violência gratuita; andando na rua, podem ser atropelados, ver a vida ceifada; a alimentação é aleatória, porque tanto pode hoje haver um manjar num qualquer caixote de lixo ricamente recheado, como se perderem dias a fio numa busca infrutífera por alimento que sacie a sua fome. Numa coisa estes cães oferecem uma lição: a liberdade que fruem.
São senhores do seu destino. Vagueiam por onde o seu sentido os inscreve, sem rota, sem obedecerem a nada nem ninguém, a não ser à sua vontade. Concedo, não têm o mesmo bem-estar material dos seus primos que desfilam como “cães de companhia”. No ininteligível mundo dos sentidos, há coisas que são desprovidas de valor, por mais que se tente fabricar um mercado que torne os sentidos comensuráveis. Os “cães vadios” são o melhor retrato. Desmentindo que a “vida de cão” seja coisa de deitar fora. Pudessem os que são bafejados pelos caminhos erráticos da vida ter o mesmo bem-estar interior dos cães, e provava-se que a “vida de cão” não é esse universo tenebroso que a voz do povo ensinou geração atrás de geração.
1 comentário:
A expressão vida de cão teria referencial bíblico, quando o filho de Noé chamado Cão foi amaldiçoado?
Gênesis 9: 18 - 25
18 ¶ E os filhos de Noé, que da arca saíram, foram Sem, Cão e Jafé; e Cão é o pai de Canaã.
19 Estes três foram os filhos de Noé; e destes se povoou toda a terra.
20 E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha.
21 E bebeu do vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda.
22 E viu Cão, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de fora.
23 Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos estavam virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai.
24 ¶ E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera.
25 E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos.
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