13.4.05

Há-de o Estado financiar a cultura?

As portas da Casa da Música estão quase a abrir. Finalmente! Rejubilam os fervorosos consumidores de produtos culturais, mais ainda o segmento do público a que se destina a infra-estrutura – os melómanos. Numa notícia, o balanço da odisseia: seis anos de construção (quatro de atraso…), seis vezes mais cara do que o planeado. As páginas negras da incerteza já foram dobradas. Agora há que aproveitar este marco indelével da cultura nacional, motivo de garbo para as gentes do Porto. Para mais quando, para o New York Times, o edifício está entre as coisas mais belas construídas nos últimos cem anos…

O episódio das desventuras da Casa da Música levanta uma interrogação: deve o Estado financiar a cultura? Não me refiro a este tipo de equipamentos, que contam para o rosário das “despesas de investimento” (onde cabe quase tudo que assim convenha ser qualificado). Estou a pensar nos subsídios que mantêm viva uma certa produção cultural indígena. Dirão os partidários da cultura da subsídio-dependência cultural: este é um imperativo de todos nós, que afinal somos o Estado em que vivemos. Dirão que não nos podemos demitir de uma responsabilidade de tamanha importância, ou ficaremos reduzidos a um marasmo cultural, um povo abrutalhado sem acesso aos prazeres da cultura.

A discordância dirige-se à obrigação de financiamento das iniciativas culturais. Concordo que devemos consumir produtos culturais. Já não tanto que este deve ser um imperativo nacional, como se fosse necessário inculcar nas pessoas a exigência de frequentar teatros, galerias de arte, óperas, etc. No que toca ao “deve ser” que recai sobre cada um, já basta o rol interminável de tarefas de que não nos podemos demitir. A cultura é um bem inestimável. Mas a cada pessoa deve ser dada a prerrogativa de decidir o que frequentar, sem que haja entidades atarefadas em indicar às massas a cultura que vale a pena. Até para evitar preferências por artistas, que desnuda a arbitrariedade do programador cultural.

Invoca-se a obrigação do Estado dedicar mais verbas à cultura. Critica-se a escassez de fundos no orçamento do Estado. Com a entrada em funções do governo rosa, mais dado aos deveres politicamente correctos de gastar dinheiro com tudo e mais alguma coisa (e mais ainda com a cultura, que clientelas suas engrossam os corredores do lobby cultural), desenha-se um objectivo que porventura será difícil de alcançar – 1% das despesas do orçamento para a cultura. Os adeptos do financiamento estatal da cultura dirão que são parcas verbas, uma insignificância que traduz a desconsideração de um país pela cultura. Ideia reforçada pela comparação com outros países, vendo-se que por aí fora gasta-se mais em cultura.

Na batalha pela maior fatia do bolo orçamental, as decisões são questionáveis. Tudo passa pelas opções, pelo que a subjectividade encontra aqui um terreno fértil. Para quem, como eu, é avesso aos gastos militares, existe margem de manobra para protestar uma transferência das verbas estupidamente gastas no simulacro de defesa nacional que nos convencem que temos. Transferência de verbas para outras áreas mais úteis para o país. Aos que sustentam que o Estado deve gastar mais dinheiro na cultura, esta é uma oportunidade de ouro. Não é caminho que trilho. Se houvesse coragem para liquidar a defesa nacional, essa gorda fatia daria para abater o peso excessivo do Estado. Nada de transferências de dinheiros para outros sectores. Nem para a cultura.

Acho engraçado como quem sustenta a subsidiação cultural se desdobra em preocupações de índole social. São as mesmas pessoas que clamam por políticas sociais mais generosas, descontentes que estão com a desprotecção social das camadas desfavorecidas. E, no entanto, não dão conta que os gastos com a cultura são do mais iníquo que existe. É ou não verdade que o público que beneficia de produtos culturais subsidiados é uma elite distante, bem distante, de quem passa por graves dificuldades económicas? São pessoas que vivem no desafogo financeiro. E que mesmo assim reclamam um financiamento do Estado para manifestações de cultura que atingem públicos específicos, um nicho de mercado de reduzidas dimensões. Reivindicam subsídios por dois motivos: para sustentar quem produz essas manifestações culturais; e para que os preços pagos pelos consumidores sejam reduzidos (quando não gratuitos), a expensas da imensa maioria de contribuintes que financia os bens culturais sem deles tirar partido.

A cultura é um mercado. Concedo, com algumas particularidades. Mas um mercado. Quem quer apresentar produtos culturais destinados a um público de reduzidas dimensões, tem duas opções: ou exige preços mais elevados, para tornar compensadora a produção cultural; ou procura fontes de financiamento junto de empresas. O mecenato existe. As empresas vão estando mais motivadas para o patrocínio de iniciativas do género. Insistir na obrigação estatal de subsidiar a cultura é um fardo injusto para os milhões de contribuintes que, com os seus impostos, financiam um sector sem dele obterem uma contrapartida. Alimentando a indolência dos agentes que gravitam em torno do universo da subsídio-dependência, com as perversas cumplicidades que se estabelecem (hoje subsidia-se este em detrimento daquele, porque o primeiro é amigo e o segundo nem tanto).

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