15.4.05

Uns vão-se deitar, outros vão trabalhar

É uma dança bizarra. Estudantes universitários que se soltam das discotecas, vindos de uma das inúmeras festas que organizam durante o calendário lectivo. Cruzam-se com pessoas humildes, frescas para iniciar a sua labuta diária. Uns arrastam os corpos cansados de saltos maquinais ao som de uma música robotizada. Inchaços de álcool, pernas cambaleantes, raparigas que não se aguentam em pé e são arrastadas em ombros. Após o sono prolongado que os espera as aulas ficam, quase desertas, à sua espera.

O passo que se entrecorta com pausas para respirar o ar salubre do exterior é testemunha de uns espécimes esquisitos. Mais velhos, acabrunhados, olhos impregnados pelas olheiras de um sono que se queria alongado. Olham-se com desconfiança recíproca. Os que já estão a pé abanam a cabeça em sinal de desaprovação, quando se cruzam com jovens universitários que fazem as figuras tristes típicas de quem foi tomado de assalto pelo excesso de álcool. Pensam com os seus botões: “ando eu a sustentar estes parasitas…” Às vezes solta-se um comentário mais deselegante, de um energúmeno de mais idade que se acha detentor de uma moralidade superior. Os visados, mergulhados nas alucinações etílicas, nem dão conta. Quem os acompanha e está sóbrio incomoda-se, por vezes. Alimenta-se a suspeição de parte a parte.

Para quem observa a estranha dança, uma imagem de incomodidade. O contraste de dois mundos diferentes. Um mundo de jovens estudantes açambarcados pela vertigem da noite. E o universo dos guardiães da moral, que erguem o dedo da desaprovação: deviam estudar mais e divertir-se menos. Esquecem-se que quando foram jovens tiveram o seu tempo de diversão. Decerto diferente, quem sabe porque a diversão da geração mais jovem de hoje exibe a aparência de irresponsabilidade. Porventura, salutar inveja dos tempos em que as preocupações estavam ausentes e toda a vista apenas apontava para a descontracção. Agora que as exigências são outras, que o tempo parece correr a uma velocidade alucinante, que a acrimónia se sucede, olham de soslaio para os jovens que, na altura própria da idade, transpiram uma aura de irresponsabilidade malquista junto dos mais velhos.

São outros tempos. Tempos de diversão diferente. Quando os mais velhos tiveram o seu laivo de juventude, o lazer nocturno não se prolongava noite dentro, até ao romper a aurora. Nem tantas vezes durante a semana. Reservavam as loucuras da noite para sexta-feira e sábado. Concentravam-se as diabruras que rasgavam a modorra do quotidiano que já se esboçava, não obstante a tenra idade.

Agora é diferente. Os corpos dos jovens parecem nutridos com energia que se renova. Repetem-se as noitadas. Vão pela noite fora, de bar em bar, copo atrás de copo, olhares trocados que desnudam cumplicidades que ora se revelam, ora ficam escondidas no imaginário. Dir-se-ia que estes jovens desprezam a luz do dia. Vivem intensamente a noite. Reservam-se durante o dia, quando dormem o sono que os retempera para a noite que virá a seguir. E quando a noite se apresta a dar lugar à luz diurna, fogem das trevas das discotecas e refugiam-se na escuridão dos seus quartos. Como se fossem morcegos, a quem a luz fere a vista.

Giza-se um conflito, implícito, entre os corpos que vagueiam à saída das discotecas e os corpos que calcorreiam a via-sacra da rotina diária de quem vai trabalhar. Alimenta-se da inveja com que os que já acordaram olham para os que ainda se vão deitar. Este é o abismo que traz a lancinante diferença de comportamentos. Os jovens que começam a ansiar por uma cama, imersos no cansaço e na desorientação dos sentidos toldados por substâncias estranhas, estão a leste da pendência. Os mais velhos inquietam-se com as energias esbanjadas enquanto eles se ocupam do sono. Perdem-se em sentenças: sobre o tanto que os noctívagos consumidores gastam e o nada que produzem. De como são parasitas. Repete-se: é a inveja que os consome, a imagem dos áureos tempos idos em que o sossego da juventude passou por eles.

A quem observa a coreografia dos corpos que vão e vêm em sentidos inversos, a estranheza dos desencontros ditados por relógios que batem descompassados. Uma fileira de jovens exangues que ainda vão conversar com o travesseiro, e a multidão que sai de suas casas, já dormida, em direcção ao trabalho. Ou de como há mundos que se tocam, de tão desencontrados que são.

Sem comentários: