De ontem vem o balanço dos primeiros meses da iniciativa “Porto feliz”, a peregrina decisão de tirar os arrumadores toxicodependentes das ruas, motivando-os para um programa de reabilitação. Para a câmara do Porto, o programa salda-se pelo sucesso. Dizem as autoridades que agora temos menos arrumadores a enxamear os locais de estacionamento público, sucedâneos dos sorvedouros de moedas chamados parquímetros. E há a marca social legada: toxicodependentes que deixaram o consumo de estupefacientes. Uma cidade mais limpa, sem a “praga dos arrumadores” e sem tanta agressão à consciência que vem dos farrapos humanos que deambulam em busca de mais uma dose.
No lançamento da iniciativa, os munícipes foram convidados a mudar de hábitos. Teriam que parar de dar a “moedinha” aos arrumadores. O mal maior para uma chaga ainda maior – a fonte de rendimentos fáceis que, puxando lustro à imaginação, os toxicodependentes arranjaram para saciar o seu vício. Quando já se tinha instalado um misto de comiseração e de salvaguarda do património – comiseração pelas figuras andrajosas que exalavam toda a sua dependência das drogas; e salvaguarda do património, pois a sensatez aconselhava à hipocrisia de deixar a moeda da praxe, não fosse dar-se o caso de no regresso o carro ter umas alterações estéticas indesejadas – eis que a câmara municipal quis que fizéssemos marcha-atrás.
Há que o reconhecer, os arrumadores de ocasião são oportunistas de primeira água. Mas lá conseguiram ter o acesso imaginativo de descobrir uma fácil fonte de rendimento. Aproveitando-se do receio dos automobilistas, instalou-se uma espécie de coacção positiva. Para os arrumadores, a sensação de que estão a prestar um serviço: ajudam na difícil manobra do estacionamento, são o vigilante que impede roubos aos automóveis estacionados na sua jurisdição. Para os “utentes do serviço”, mais um mal necessário, mais uma fonte de despesas, é certo, mas a habituação a um inevitável serviço para impedir que danos fossem causados nos carros. Pelo meio, os cidadãos com mais tibieza tinham que admitir que estavam a contribuir para a toxicodependência dos arrumadores.
Para o programa “Porto feliz” ter sucesso, o município tinha que convencer as pessoas a mudarem de hábitos, recusando a moeda ao arrumador que surgisse pela frente. Aqui estava o problema, o dilema da “galinha e do ovo”: o sucesso do programa passava pelo estancamento da fonte de rendimentos dos arrumadores. Restava convencer os proprietários de automóveis a recusar a oferta da moeda, instalando-se o medo de que riscos dessem um aspecto diferente à pintura do veículo, ou que no regresso ao carro houvesse vidros partidos, amolgadelas várias, prejuízos muitos. Que se saiba, a câmara não previu solução para os desmandos causados por arrumadores enraivecidos. Não se ofereceu para cobrir os prejuízos provocados pela revolta dos arrumadores que viam desaparecer uma mirífica fonte de rendimentos.
Enquanto as drogas não são liberalizadas, a hipocrisia da sociedade é a voz de serviço, acolitada pelas decisões moralistas das autoridades que não se cansam de estar ao lado do higienismo dominante. É fácil dizer que o consumo e o tráfico de drogas são uma chaga social. Convinha investigar a fundo quem beneficia do grande tráfico, para depois de tirar conclusões – então não precipitadas, como por ora acontece. Enquanto as drogas continuam a ser alvo de censura social, a hipocrisia dominante convida-nos a recusar a moeda aos arrumadores, como se fosse a prescrição mágica para banir o mal. Os iluminados decisores esquecem-se de um detalhe importante: enquanto coleccionam as moedas que os automobilistas dão, os toxicodependentes não se entregam (ou entregam-se com menor frequência) à “pequena criminalidade” (furtos de variada espécie, para alimentar o vício).
No cotejo dos males, o mal menor é a menor das más soluções. Entre todas as hipóteses que se perfilam – e, repito, enquanto não houver coragem para legalizar o que é ilegal, mas que acontece a toda a hora, zurzindo da autoridade do Estado – é aconselhável deixar os arrumadores nas ruas. São um incómodo, é verdade. O que fazem é uma doce forma de extorsão, com a conivência de quem se vê coagido a dar a moeda. Mas enquanto não se desterrar a hipocrisia que nos manieta, é o mal necessário, o mal menor que não se compadece com falsos moralismos. Por mim, continuo a ter uma reserva metálica dedicada aos arrumadores. Fica mais barato do que solucionar surpresas desagradáveis que trazem desarranjos estéticos ao automóvel.
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