Diria um cineasta, “a vida é bela”. Por muitos motivos, que todos conseguimos avançar com celeridade para cima da mesa. Um deles, digo eu, pelo inusitado com que tropeçamos a espaços. Há surpresas boas, tiradas de mestre que fazem avançar o mundo. Há outro tipo de insólito que apenas nos deixa boquiabertos, a inquirir como é possível tanta imbecilidade ser apascentada por um grupo de mentes iluminadas.
Há dias soube-se que o sorridente Tony Blair decidiu adicionar mais um ministério à orgânica do governo: o “ministry for fitness” – qualquer coisa como ministério para a (boa) forma física (em tradução livre). Nomeou uma senhora, cujo nome deixei perdido no quarto dos esquecimentos. Assim que tomou posse, a senhora ministra afirmou que ia obrigar os súbditos do reino a praticar exercício físico. Talvez haja alguma lógica economicista escondida detrás desta medida perfumada com o tom das “medidas sociais”. O sedentarismo leva precocemente mais gente, e mais jovem, para os cemitérios. Quando a coisa não corre tão mal, os que se recusam a mover uma palha (falando de exercício físico) são acometidos de graves padecimentos. Num caso como noutro há uma factura mais gorda a bater à porta da segurança social. Suspeito que o utilitarista Blair não está verdadeiramente preocupado com a saúde de quem governa; apenas com a saúde das contas públicas.
Vou deixar de lado a verdadeira motivação da inusitada medida. Vou abraçar-me à ingenuidade de quem acredita que esta decisão é exemplar das boas “políticas sociais”. Dúvida sem resposta: como é que a senhora ministra da forma física vai obrigar os britânicos a praticar mais exercício físico? Podia a senhora confessar o seu exagero retórico. Podia descer à terra e reformular as suas bombásticas promessas; e dizer que vai gastar rios de dinheiro com campanhas publicitárias que sensibilizem os súbditos acerca dos benefícios de corridas, abdominais, natação e afins.
Mais despesa pública, com as tais campanhas que irão invadir o quotidiano dos britânicos. Não tenho legitimidade para protestar contra essa despesa – serei advertido pelos mais atentos. É verdade que não pago impostos no Reino Unido, o que prejudica a minha legitimidade. Contudo, temo que este seja o primeiro passo para um súbito contágio a outros países. Logo agora que está em moda o “benchmarking”, isto é, os governos dos países copiam os “bons exemplos de governação” (ou que os governantes, na sua tradicional miopia, julgam ser bons exemplos). Sócrates é um admirador confesso de Blair. Fica por saber quanto tempo vai demorar até este governo importar do Reino Unido a ideia do ministério para a forma física. Com subsídios para a populaça começar a frequentar ginásios, porque no Inverno não é aconselhável o exercício ao ar livre. Avisado, este governo não vai querer que a gente anónima não morra do mal e venha a morrer da cura.
Por mais e mais motivos, quantas vezes comezinhos, os governos invadem a esfera individual. O paternalismo do Estado é recorrente, como se, adultos impenitentes das repetidas cabeçadas na parede, precisássemos do governo como substituto dos pais que já não têm o mister de nos educarem. Neste assunto do exercício físico, estou como peixe na água – pela prática regular do jogging matinal que me trouxe um coração de atleta (dizem-no electrocardiogramas e simpáticas técnicas de saúde que os interpretam). O que me custa a admitir é que doravante venha um qualquer ministro para a boa forma física determinar que exercício físico (e em que quantidade) deve cada cidadão fazer. Lá vem o mau feitio à superfície: o simples cenário da existência deste ministério seria pretexto para me entregar nos braços do sedentarismo.
E depois há o perigo de ficarmos, aos magotes, dependentes do exercício físico, meio caminho andado para duas consequências nefastas: a sede do “altius, fortius, citius”, porta entreaberta para substâncias dopantes, para maximizar o rendimento físico e depois arcar com os efeitos secundários dessas drogas; o espírito competitivo alimenta mais filiados nas várias modalidades desportivas. Fortalecendo as federações respectivas. E contribuindo para a emancipação do desporto em relação à vida civil. O desporto rivalizaria com os militares, que também reclamam um estatuto à parte entre os demais mortais. Ocorre-me uma inquietante interrogação: queremos mais lodaçais como o que empesta o futebol?
O melhor é deixar a decisão a cada pessoa. Sem interferências de putativos engenheiros sociais que teimam em fazer as vezes de penhores da consciência social. E deixar que cada pessoa decida ser sedentária ou fanática do exercício físico. Deixar cada pessoa assumir-se como um adulto que não carece da omnipresente tutela dos governos.
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