Nas extremidades de uma escala, a ingenuidade e o pragmatismo. Convivendo em cada pessoa. Vão variando os domínios onde impera agora a ingenuidade, onde ali se destaca o pragmatismo. Quando algum de nós oscila do pragmatismo para a ingenuidade, dir-se-ia que atravessa um longo deserto entre a gélida paisagem árctica e a vegetação frondosa e perfumada dos trópicos.
Assuntos há em que descaímos para uma ingenuidade desarmante, infantil. Há o substrato filosófico que dá cor a essa ingenuidade. Quando actua, a simplicidade destaca-se na análise das coisas. Tudo se resume a uma forma muito simples de diagnosticar os problemas, como simples são as soluções encontradas. Reconhece-se a ingenuidade, vê-se nela um obstáculo intransponível entre a simplicidade com que os olhos vêm as coisas e a forma complexa da realidade. As decepções abundam, quando a ingénua simplicidade toma conta das percepções e os olhos percebem que a realidade está nos antípodas do idealizado.
Outras vezes o espírito salta para a margem oposta, perfilhando uma pragmática forma de ver as coisas. Se há matérias onde a ingenuidade deixa vir à superfície o adolescente empenhado em causas nobres, noutras o realismo apodera-se do ser. Os idealismos são interrogados com veemência, os sentidos perdem a pureza que permitia a entrega à simplicidade ingénua. É a frieza que emerge, como se o corpo se revestisse de uma epiderme áspera, a protecção necessária contra as impurezas com se depara durante o percurso dos dias que correm.
Para o lado ingénuo, quando a frieza pragmática fala mais alto é como se a pessoa se mecanizasse, perdesse dons humanos e entregasse nos braços de uma desapiedada maneira de encarar o mundo, as coisas, as pessoas. Do lado de lá, o hemisfério pragmático denuncia a veia ingénua: o mundo não é o mar de idealismos, por ser a antítese dos idealismos. Logo o lado ingénuo contrapõe que o diabólico pragmatismo é fautor da perversão do mundo, da transformação do ser que o molda à guisa de besta que perde a noção da humanidade e se animaliza. A dialéctica não cessa. O hemisfério pragmático não calará a sua verve. Os idealistas perdidos na labiríntica ingenuidade erram na direcção da relação causal: eles, pragmáticos, são um produto da adaptação às transformações do mundo, não podem ser acusados de terem motivado essas transformações.
Perdidas num diálogo interminável, as duas metades do ser ignoram o óbvio. Na deambulação entre o pragmatismo e a ingenuidade o ser entrega-se à ditadura do oportunismo. Umas vezes é conveniente ser ingénuo. Outras vezes convém ser pragmático. Sempre por imperativo das ideias seguidas, consoante os assuntos onde sejam reclamada uma posição pessoal. O oportunismo, que ora leva à ingenuidade ora ao pragmatismo, é o sinal evidente que ingenuidade e pragmatismo não são espelhos genuínos do que somos. Apenas um produto da formatação que nos invade. Ela determina o vaivém entre os hemisférios da ingenuidade e do pragmatismo.
Mas aqui voltamos ao ponto de partida. O substrato que confere o cimento ao ser não vem dominado ou pelo pragmatismo ou pela ingenuidade? Como se andássemos em círculos, perdidos nas entranhas de um labirinto que, afinal, não tem saída. Diz-se que descaímos para um dos extremos por oportunismo determinado pelo cimento filosófico que sedimenta a textura do que somos. Como se o substrato filosófico fosse a ossatura em que assentamos e a ingenuidade e o pragmatismo o sangue e os músculos (ou vice-versa).
Qualquer que seja a saída para este dilema perfunctório, o que vinga é a percepção do oportunismo. Quando o corpo se inclina para uma das extremidades não pode negar a existência da influência contrária. Ainda que a tente obnubilar, ela existe. Por paradoxal que pareça, a urgência em sublimar uma das facetas acaba por enfatizar aquela que queremos esconder. Quando queremos ser ingénuos, negando validade ao pragmatismo, quem sabe se somos genuinamente pragmáticos? Ao espremer o sumo de uma laranja, queremos aproveitar o suco adocicado, o líquido aveludado sem o travo espinhoso dos caroços e da polpa densificada que ficaram retidos no coador. Mesmo que só queiramos aproveitar o lado sumarento, não podemos ignorar a matéria que rejeitamos, deitada na rede do coador. Ela existe, e dela se desprendeu a matéria sumarenta que queremos tragar.
E lá vinga o oportunismo, fazendo-nos vacilar entre o pragmatismo e o idealismo ingénuo.
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