15.8.06

Do conformismo


É recorrente o regresso às palavras escritas por João Carlos Espada no Expresso. Desta vez Espada faz uma auto-interrogação: “o que mais o marcou na sua passagem pela Inglaterra?” A resposta vem na senda das palavras já gastas que Espada dedica na sua coluna semanal no Expresso, quando enaltece o “gentlemanship”, a “virtude”, as regras que se acatam sem discussão. Vale a pena citar a resposta de Espada: o que mais o marcou em Inglaterra foi “o sentido de ordem e de confortável obediência a regras de conduta, muitas vezes bizarras, quase sempre dificilmente demonstráveis, e geralmente herdadas.

Não se discute o direito pessoal de seguir regras de conduta herdadas dos antepassados. Do mesmo modo que não se deve questionar quem se desvia dessas regras de conduta, porque não se revê nelas, desfasadas do tempo em que vive, regras, no seu entender, obtusas. O problema que atravessa os escritos de J. C. Espada é o seguinte: no afã de mostrar que o relativismo é o mal da modernidade, Espada defende de peito aberto as suas convicções, as regras que ele diz acatar sem questionar. O que é lamentável é não ter poder de encaixe para respeitar os que dele discordam, os que não cultivam o mesmo código de conduta. Ao querer defender-se dos seus adversários, que Espada imagina terem apenas o desiderato de desfazer o mundo ordeiro que ele advoga, resvala para a intolerância. De nada lhe vale a semântica da liberdade, tantas vezes apregoada para esboçar a teoria que alicerça as suas ideias (vetustas ou não, aqui não interessa debater). A intolerância não se compadece com o exercício da liberdade.

O que me causa espécie é o conformismo confessado por J. C. Espada. Compreendo que haja pessoas a quem o “sentido de ordem” traga conforto, pelo pavor que têm ao caos. Para muitos a estabilidade (de costumes, de regras) é um bem que se encontra lá no alto, na escala das prioridades. Daí que também seja compreensível a “confortável obediência a regras de conduta”, pois elas são o cimento da ordem estável. Por sinal, é o status confortável da ordem estável que fermenta nestes conformistas um sentido de obediência que Espada adjectiva a preceito: “confortável”…

Em contrapartida, intriga-me como alguém que não renega a racionalidade admita que as regras do código de conduta cegamente respeitado sejam “muitas vezes bizarras” e “quase sempre dificilmente demonstráveis”. Que pessoa, no seu bom juízo, pauta a sua conduta por regras bizarras? Será que a bizarria se compadece com o “sentido de ordem” que os conservadores prezam tanto? Ou bem que estou a interpretar erradamente as palavras de J. C. Espada, ou parece-me que há aqui uma contradição insanável. A ordem estável, herdada dos costumes e regras cimentados com a passagem do tempo, o código genético do conservadorismo militante, essa ordem é tudo menos bizarra. As causas fracturantes, essas sim são do domínio do bizarro.

É certo que Espada, mais adiante, fornece exemplos da bizarria dos costumes que o excitam intelectualmente. Desfila o rol dos usos bizarros que os fellows de Oxford são levados a respeitar, religiosamente. Convenhamos que se trata de um microcosmos, não de um espelho da Inglaterra contemporânea. Os preceitos que os fellows de Oxford respeitam são uma herança ancestral, o prolongamento de usos datados para os tempos modernos. Nada contra. O passado revive-se de formas diferentes. Uns gostam de o recordar em feiras medievais, onde desfila a ambiência típica da idade média. Outros gostam de mergulhar na poeira do tempo e fazer de hoje costumes enterrados há séculos. Que se diga que esses usos ilustram a idiossincrasia actual de um povo é um equívoco. É tomar o todo pela parte – como se uma árvore fizesse a floresta, quando, ao fim e ao cabo, a árvore é a excepção.

Desconfio que Espada se sente desconfortável com o tempo em que vive. Acossado pelos ventos pós-modernos (que renega) e pela ditadura do relativismo (que, dou-lhe razão, como esboço de ditadura é contestável), é um saudosista do passado que conhece pelas leituras e que pôde reviver na sua estadia em Oxford – há que o recordar, um microcosmos de uma Inglaterra dos costumes vitorianos que só escassamente são vividos pelo inglês comum. Espada erra ao assumir que tal microcosmos é um retrato fiel da Inglaterra contemporânea. Que Espada tenha os seus fetiches, é coisa que só a ele diz respeito. Há liberdade para o assumir. Quando muito põe-se a jeito da chacota de quem exibe desdém pelos fetiches particulares de J. C. Espada. Ele tem que perceber que da mesma forma que dispõe de liberdade para cultivar as bizarras e indemonstráveis regras que pautam o seu comportamento, os que dele discordam têm a liberdade para discordar e, se quiserem, escarnecer. Quando alguém se expõe ao ridículo, é o preço que paga.
A frase que encerra a crónica, recuperada do seu herói Churchill, é sintomática do equívoco intelectual de J. C. Espada: “devemos desconfiar das inovações desnecessárias, especialmente quando são guiadas pela lógica.” E quem decreta que uma inovação é “desnecessária”? E o que é a “lógica”? Um conceito unívoco? Ao ler J. C. Espada reforço a minha convicção: tão depressa não sou conservador, como não sou das esquerdas.

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