De ano para ano, levas de emigrantes da África sub-sahariana fogem do chão pátrio para a Europa. Ocorre-me um lugar comum para descrever a fuga colectiva: a busca do prometido eldorado. Para muitos, a última vez que avistam terra firme é quando, já embarcados, se perfila ao longe a costa que os viu partir. Para esses, o mar é a sepultura. A promessa ficou por cumprir. O expoente máximo da infelicidade, por quererem escapar a uma vida indigna e afinal partirem rumo à morte. Alguns dirão que para os abandonados pelos deuses a morte será um mal menor, comparado com a vida de privações que lhes trouxe o travo amargo da existência desumana.
De ano para ano, são mais frequentes as imagens de um bote virado numa praia do sul de Espanha ou das Canárias, negros tiritando de frio a serem recolhidos pela polícia, ou um cadáver que jaz escondido dos olhares indiscretos por um cobertor impessoal. Mais e mais vidas se perdem na longa língua do mar traiçoeiro que separa da terra prometida. Sem saberem ao que vão, quantas vezes, embarcam rumo ao desconhecido. Acreditam que será melhor do que a vida miserável que os escolheu na terra onde nasceram. Depressa o êxodo organizado alimentou oportunidades de negócio. Depressa saltaram da toca mercenários de almas que fazem riqueza com a desgraça alheia. Arranjam um transporte inseguro, atafulham a frágil embarcação com uma multidão de negros que foge da inclemência destinada até ao fim dos seus dias.
Alguns exemplos de sucesso de emigrantes que conseguiram aportar terra segura e estabilizar a vida no continente europeu aguçam o apetite de outros que vegetam pelos países onde campeia a miséria. Esses escassos exemplos de felicidade são o chamariz para a turba que prefere tentar a sua sorte no escuro. Alguns entram no prometido paraíso. Outros conseguem entrar mas são logo detectados pela polícia. Aventura fracassada com o objectivo à vista. Regressam a casa, com o beneplácito das autoridades que os devolvem à procedência através de um meio de transporte seguro (o avião).
Os que derrotaram a morte escondida nas ondas do mar e a polícia que os esperava no areal deserto beijado pela embarcação, depressa percebem que o paraíso é uma promessa ilusória. Perseguidos pelo fantasma da deportação, vivem um quotidiano angustiado. Expõem-se ao aproveitamento insidioso de empresários oportunistas, que não olham a meios para tirar partido da situação frágil destes imigrantes. Salários indignos e longas jornadas de trabalho, uma força de trabalho barata, mais lucro fácil no horizonte. A indignidade humana a gritar bem alto. Que não venham outros oportunistas com a retórica dos males do capitalismo para diagnosticar o problema. O problema ultrapassa doutrinas económicas. É da natureza humana: na sua avareza, na sua ambição ilimitada que ofusca os meios quando o que mais conta são os fins a atingir.
Por cá, mergulhados na afluência material, olhamos com distância ao drama humano que se passa nas praias das Canárias e do sul de Espanha. No conforto das nossas casas dissertamos sobre o drama que passa nos noticiários. A patetice vai de um lado ao outro. Quando ouço ou leio algozes da extrema-direita a reafirmar as suas teses da pureza da raça, ou da nacionalidade, ou o que quer que isso seja nos dias que correm, apetece-me pegar num taco de basebol e desancá-lo nas suas cabeças luminosas. Sempre é a linguagem que esta gente parece perceber. E quando ouço ou leio líricos que vão da esquerda à extrema-esquerda a expiar a sua consciência, argumentando que o problema da emigração se resolve com mais ajuda ao desenvolvimento aos países de onde os emigrantes partem, compreendo as expiações individuais mas não as vejo como solução para o problema.
Que sejam contra o capitalismo, que patrocinem teorias que acusam a colonização do passado pelo subdesenvolvimento do presente, percebe-se. Podiam, ao menos, andar de olhos abertos, discernir a corrupção instalada entre as elites que dominam os países que recebem a escassa ajuda ao desenvolvimento. Deviam perceber como essas ajudas – dinheiro e ajuda em espécie – se perdem nos corredores da corrupção, como enriquecem uma reduzida casta que vive no fausto enquanto uma multidão de concidadãos mergulha na indigna miséria. Zapatero, primeiro-ministro espanhol, não percebe o equívoco em que labora: pode ser compensador para a sua imagem, para a aura de romântico e civilizado émulo dos revolucionários latino-americanos, mas o fluxo da emigração não terá um fim enquanto persistir a pobreza que é promovida por quem governa esses países.
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