Não é a primeira, nem a segunda, talvez nem a terceira vez que me insurjo contra a sanha persecutória que vitima os fumadores. O tal fascismo higiénico, uma das molduras que reveste o politicamente correcto dos nossos dias: o fundamentalismo anti-tabagista. Para quem esteja à espera de manifestações desta intromissão na liberdade individual, não é preciso esperar muito tempo. São assíduas e pouco espaçadas no tempo.
A mais recente chega da Irlanda. A lei que combate o tabaco permite que as empresas discriminem fumadores quando contratam trabalhadores. Quem seja honesto e admita que fuma uns cigarros por dia, corre o risco de penar longos meses nas filas dos centros de emprego, de mão estendida à espera do subsídio de desemprego. Uma pessoa que aterre na Irlanda e tenha o vício privado do tabaco é relegada para segundo plano, cede o lugar a outros – os que, por um acaso da vida ou apenas por omissão mentirosa, confessem a sua imaculada condição de não fumadores. Ainda que o fumador seja a pessoa mais indicada para uma certa empresa. Mesmo que seja o candidato que oferece mais garantias de eficácia à empresa que está a recrutar. Por resvalar para o impenitente vício do fumo, ele vai ser discriminado.
E eis como vamos de deriva em deriva até a uma sociedade perfeita, só feita de seres humanos sem vícios. Mesmo que para isso a sociedade se permita à perfídia de ver o Estado crescer nos tamancos do autoritarismo, invadir domínios que pertencem à esfera das escolhas individuais. Tenho medo de um futuro assim. Receio que estejamos a ser educados para uma sociedade que se assemelha a um rebanho: ovelhinhas bem comportadas, todas a seguirem ordeiramente o mesmo caminho, pastoreadas por um vigilante pastor – um escol de engenheiros sociais que se arvoram na suprema condição de condutores dos demais –, sem lugar à dissidência. Ou, se ela existir, tutelada pelo direito à diferença que as apenas formais democracias autorizam, com o preço elevado da marginalização.
Este é o mundo moderno que combate as discriminações que se abatem sobre as minorias. O mesmo mundo que esboça novos campos de concentração onde são acantonados os novos excluídos. Os fumadores encaixam-se no perfil. O que é intrigante é a posição ambígua das autoridades. O cerco aos fumadores está montado: as campanhas de terrorismo intelectual; a exclusão dos fumadores, condenados ao ostracismo social; a proibição de publicidade em manifestações desportivas; os pequenos sinais que enviam poderosas mensagens a cada membro do bem comportado rebanho, que se quer livre do tabaco. Ao mesmo tempo, a falta de coragem para proibir o tabaco, quando afinal ele é diabolizado pelas autoridades sempre tão diligentes em zelar pelo nosso bem-estar. Interrogação inevitável: se os cigarros e afins são execrações, o que falta para os proibir?
Temo por um lugar asséptico que nos impõe, como imperativos, códigos de conduta. O que devemos ou não fazer. O que podemos ou não consumir. Um lugar, uma sociedade, que reduz cada indivíduo ao papel de acéfalo autómato, desprovido de livre arbítrio. Outros, cabeças bem pensantes e superiormente iluminadas, hão-de pensar e decidir por nós. Dispenso a versão moderna de iluminismo intelectual. Os riscos não compensam as virtudes da engenharia social que nos propõem. Hoje, como na Irlanda, a “normalidade” permite discriminar os fumadores. Pretexto ideal para outras categorias serem os alvos das discriminações: um adepto do Belenenses, quem tenha a poesia como hobby, os bebedores habituais, um homossexual (ou, pelo caminho que isto leva, quem sabe se pelos cânones da cómica “discriminação positiva” os próximos excluídos serão os que revelarem a sua heterossexualidade…). Quando se abre uma porta à discriminação, e ela é vista com bons olhos pelos que fazem da intolerância profissão de fé e por todos os que andarem distraídos, as portas seguintes (de outras discriminações) abrir-se-ão de par em par.
O tentacular fascismo higiénico vem atrelado ao ridículo. Ontem li algures que uma peça de teatro que recria a vida de Churchill foi submetida à operação cirúrgica da transfiguração da História. Churchill era um fumador compulsivo. Quantas não são as imagens de Churchill com um charuto na boca? Esta peça de teatro revisita um diálogo que ficou famoso na biografia de Churchill, que terá sido testemunhado por um charuto expelindo doses maciças de fumo. A peça de teatro eliminou o charuto. Em nome do politicamente correcto, refaz-se a História. Afinal o estalinismo está aqui tão perto.
1 comentário:
Já escrevi sobre este afã proibicionista: tem toda a razão. Estamos a ser sufocados pelo exercício arbitrário e intolerante do politicamente correcto. E estes fascistas ou stalinistas estão espalhados por todo o lado, desde a Administração Pública, passando pelas lideranças políticas, continuando nos media e terminando (desculpa o remoque) na tua querida Comissão Europeia.
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