Para os cultores dos prazeres do espírito, não passem desta frase. O texto que se segue contém pensamentos supérfluos sobre a banalidade do corpo. Ou talvez não.
Não é caso para puxar lustro à inquirição de antanho: “espelho meu, espelho meu…”. A pergunta de retórica – vergonha do espelho? – esconde relações mal digeridas entre o indivíduo e o corpo que carrega. Do que se tem vergonha é do que o espelho espelha. Da silhueta retratada do outro lado do espelho, com as adiposidades que escorrem, abundantes, corpo abaixo, a camada de gordura que fez o corpo crescer para os lados. Reveses da idade. Desgostos da gula mal controlada, que o corpo tem mais barriga do que olhos (na inversão do adágio popular). É o corpo que paga as descompensações assimiladas. E depois do corpo exteriorizar o desmazelo, é o espírito que suporta os custos de uma relação conturbada com o espelho.
Descontando os problemas hormonais que trazem a obesidade, nos demais casos somos o espelho do descuido com o corpo, uma via-sacra para os descaminhos das doenças que vêm agarradas à obesidade. E se as consequências a prazo não estiverem no cardápio das preocupações quotidinas, ao menos o bem-estar pelo corpo que carregamos há-de pesar algo na consciência. A menos que nos escondamos do espelho. A menos que à saída do banho, na nudez irreprimível, haja o metódico exercício de olhar para o lado contrário do espelho. Não serão laivos de narcisismo. Já foi moda tecer loas à gordura como bitola da formosura.
Contudo, os tempos modernos têm a mestria de semear dilemas que castigam o espírito. Se a gordura deixou de ser formosura, aconselham os costumes a cultivar um corpo firme, enxuto de adiposidades, uma silhueta esbelta. Os hábitos alimentares que nos seduzem são adversários contumazes do protótipo físico que está em voga. Seja a fast food dos dias apressados, seja a gastronomia tradicional pródiga em gorduras copiosas, seja a gastronomia requintada que despreza o combate às calorias. Acresce o cansaço da vida quotidiana. É um apelo a repastos afidalgados, que só não culminam num sonoro arroto porque os costumes ocidentais não incorporaram esse hábito muçulmano. Por prazer ou por necessidade, o corpo pede alimento que se afasta da vida regrada, critério indispensável para um corpo saudável.
Dir-me-ão que um corpo disforme não é importante. Que um corpo avantajado, com as muitas pregas que acamam a gordura acumulada, não é sintoma de mau estar pessoal. Um obeso pode estar de bem consigo mesmo. Pode ser um compulsivo gastrónomo, o prazer maior que ele pode ter. O espelho é uma minudência. Um olhar pelo canto do olho basta para saber que as gorduras não cessam de crescer, sem olhar com vergonha para o que vê do outro lado do espelho. A disciplina mental consegue desfigurar as imagens que os nossos olhos vêm. Como se nos convencêssemos que o espelho revela uma imagem mais simpática do que a realidade oferece. Uma miopia benfazeja. Ou a bitola estética foi carrilada por uma avenida alternativa: fazer o louvor da gordura farta, pelo comprazimento pessoal de ser personagem de avantajadas formas. Não há corpos disformes, apenas corpos que cresceram de dimensões, o preço a pagar por adversidades várias da vida. A consciência há-de aquietar-se com o peso excessivo.
Como em tantas coisas na vida, há caminhos desencontrados. Corpos quase esbeltos que, ao mínimo sinal de uns centímetros a mais em torno dos abdominais, semeiam o desconforto de fitar o espelho. Ainda que esses corpos sejam exemplares ao lado de outros que exibem sem vergonha as adiposidades excessivas. Os olhos de cada um, o juiz supremo. A subjectividade do olhar impera, com os diagnósticos complacentes ou perfeccionistas que levam, respectivamente, a pactuar com as gorduras a mais ou à exasperação pelos centímetros herdados de algum desleixo alimentar.
Futilidade, dirão os cultores do espírito, que sempre desdenharam o exterior por não mostrar a essência do que somos. Admito a fútil natureza dos cuidados do corpo. Para além das divergências do sentido estético que levam à sobrevalorização ou à desvalorização do corpo, há um aspecto que não pode ser escamoteado: mesmo aos que cultivam a nobreza do espírito, quando estão de mal com o espelho – porque o espelho reflecte que estão de mal com o corpo que transportam – o mau estar é interiorizado pelo espírito. Que sofre, porque não está satisfeito com o corpo onde está alojado. Eis como espírito e corpo são um e um só. Desmentindo os líricos que olham à beleza do espírito, como se a alma de uma pessoa fosse desmaterializável.
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