(Na sequência do texto de ontem)
Se há um valor que defendemos a todo o custo, devemos permitir excepções com o pretexto de assegurar esse valor? A liberdade é um valor fundamental, esteio da humanidade sem espartilhos. Escudados na necessidade de preservar a liberdade atacada pelos seus inimigos, os guardiães da liberdade (pelo menos é assim que se apresentam) não hesitam em colocar freios na liberdade. É este paradoxo que me deixa perplexo: como defender a liberdade impondo restrições à liberdade?
Os fervorosos defensores dos travões às liberdades nem percebem como estão em sintonia com os inimigos da liberdade. Argumentam: os inimigos da liberdade – por hoje, os terroristas islâmicos à cabeça – querem destruir os alicerces da sociedade livre e tolerante que herdámos. Ora se eles querem corroer a liberdade que usufruímos, entram a vencer a partir do momento em que, do lado de cá, as autoridades mostram o músculo do poder e cerceiam as liberdades que os cidadãos estavam habituados a dispor. Autoridades a fazer o jogo dos tais inimigos. Tenho dúvidas que estes guardiães da liberdade sejam genuínos defensores da liberdade. Suspeito que o frenesim terrorista é a melhor prenda que as autoridades musculadas do ocidente podiam algum dia receber. Justamente para mostrarem a democracia musculada, o estertor de uma liberdade mascarada.
O que temos é uma liberdade patrulhada pelos mastins de garras afiadas. Basta olhar em redor, medir o pulso ao catálogo de proibições, como elas nascem, férteis. Multiplicam-se: por causas nobres, ou por insignificantes pormenores. Lá do alto, empoleirados nos cortinados do poder, os que mandam desdobram-se em cuidados semânticos. Ensaiam a quadratura do círculo. Tentam mostrar que todas as proibições são excepções à liberdade. Continuam a veicular a mensagem da sagrada liberdade pessoal. O problema é que o valor da liberdade é incompatível com os meios-termos: ou há liberdade ou não há. E quando as excepções à liberdade saltam como coelhos da toca, é sintoma de liberdade negada. Os que têm a honestidade intelectual de justificar as excepções à liberdade “em nome da liberdade” descobriram um eufemismo: liberdade patrulhada.
Dirão que o adjectivo adicionado à liberdade não é um fardo para os cidadãos que cultivam o valor. Os que ameaçam a sobrevivência da liberdade, os que querem impor a derrota da liberdade pelo ferro e fogo, pelo terror, esses é que são patrulhados. Contudo, os outros – nós, deste lado, habituados a conviver em liberdade – somos vítimas desta liberdade patrulhada. Somos as primeiras vítimas. Nem sequer as vítimas colaterais, como sugerem, com uma condescendência paternalista, os mastins da liberdade patrulhada.
É sobre nós que se impõem as excepções à liberdade. É sobre nós que cai o incómodo de aleatórias revistas à entrada dos aeroportos, só porque apanhámos muito sol na praia e temos a tez escurecida. É sobre nós que pesa o desconforto de não sabermos se as conversas telefónicas ou as mensagens de correio electrónico estão a ser inspeccionadas por um zeloso guardião da liberdade patrulhada. Nem sequer sabemos se, por um motivo insignificante, temos ficha nos serviços secretos. Exemplos a mais de intrusão na vida privada de cada pessoa. Para quem continua a defender isto em nome da liberdade, parece um contra-senso. A liberdade começa a partir do momento em que assegurem que a vida privada não é vasculhada. De contrário, não há liberdade.
Hoje em dia, as leis são feitas para impor comportamentos, para proibir isto ou aquilo, para levantar sanções a quem se furtar aos comportamentos idealizados. As leis não são feitas para consagrar direitos. São leis abusivas, intrusivas, leis pela negativa. Leis em excesso, uma verdadeira diarreia legislativa que contamina o ambiente com um cheiro pestilento. O cheiro próprio da liberdade patrulhada, esse eufemismo com a máscara da tristeza. A liberdade só terá o seu expoente máximo quando a humanidade atingir a maioridade. Concedo: na história milenar na humanidade, ela ainda não atingiu sequer a adolescência. Pretexto ideal para os policiais defensores da liberdade patrulhada invocarem o necessário estado de excepção da liberdade patrulhada.
Afundado no meu idealismo ingénuo, continuo a acreditar que só existirá liberdade quando a única norma proibitiva for aquela que proíbe as proibições. Até lá sinto que usufruo de uma liberdade condicionada.
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