Todos julgamos que o somos. Faz parte da singularidade de cada pessoa. A diferença para os demais é o código genético da mais valia que temos para oferecer. Sem percebermos que o cemitério é o único lugar repleto de indispensáveis.
Há alguns que se arvoram na condição de indispensáveis, esses mais que os restantes. Encaixam-se em duas categorias. Os que nunca tiveram oportunidade para provar as inestimáveis qualidades que poderiam ser colocadas à disposição do colectivo. E os que já tiveram o ensejo de exercer poder, mas que dele foram desapossados – vicissitudes da alternância partidária, ou um simples acaso que colocou alguém mais competente à sua frente, ou simplesmente alguém com as costas mais quentes. Estes indispensáveis olham-se ao espelho e sabem que o reflexo é um exemplar de excelência, um eleito, qualidades muito acima da média. Consideram-se uma dádiva para a sociedade.
Quando percebem a ingratidão da sociedade, que não os chama ao escol dos poderosos, destilam raiva. Tornam-se amargurados, sentem-se injustiçados no desaproveitamento das suas excelsas aptidões. Os que o rodeiam provam repetidamente o seu feitio irascível. No casulo em que se refugiam, moldam reservas contra a ignara sociedade. Enclausurados na monástica forma de ser, cultivam a suspeita. Na sua cabeça fervilham impensáveis cenários conspirativos, como se o mundo acordasse todos os dias e estivesse, inteiro, contra eles, os eternamente injustiçados.
Há uma nota dissonante que fermenta a doentia personalidade dos indispensáveis. Um hiato profundo entre as ambições desmedidas e a frustração de ver as ambições sempre adiadas. As ambições confundem-se com sonhos. É no domínio do onírico que alimentam a verve de indispensáveis. Vivem no mundo da ilusão. E nesse plano arquitectam os pretextos para fracassos pessoais. Choram pelas oportunidades que não conseguem ter, quando tanto se esforçaram por bater às portas certas que abrissem as janelas por onde iriam refulgir as suas brilhantes aptidões. No mercado do tráfico de influências, por mais que se coloquem em bicos de pés, não conseguem rivalizar com os mais astutos. São estes que vingam, remetendo os demais, os indispensáveis, à solidão dos fracassos pessoais. E aí reforçam o auto-diagnóstico: quanto mais fracassam, quanto mais as ambições ficam adiadas, mais indispensáveis se acham.
Às vezes, trata-se de perda de talentos. Desaproveitados por desencontros da sorte, ou apenas por inépcia que anda de mão dada com o imobilismo dos que acabam por não ultrapassar o limiar dos indispensáveis que não chegam a provar que o são. Muitas vezes, a emigração é a saída final, a tentativa de provar que o estrangeiro é mais pródigo que o chão pátrio. De outras vezes, é um espelho desfocado que os faz crer que são indispensáveis criaturas desaproveitadas pelo colectivo. Ou por subalternizarem as aptidões dos que franqueiam os portões do poder ou do sucesso, ou porque o espelho desfocado exibe uma imagem desproporcionada do que eles são. Como se pequenos Lilliputs fossem retratados pelo espelho como Gullivers prontos a esmagar com a sua falaz sabedoria. Uns e outros campeiam entre o universo dos que reclamam por comiseração. De mão estendida pela esmola que chega na forma de caridade alheia, não vá essa caridade engrossar o leito de um rio caudaloso de tal arte que se transforma na oportunidade para ascenderem ao Olimpo dos eleitos.
Interrogo-me: amiúde, não está a lente desfocada, propositadamente calibrada para aumentar o auto-diagnóstico? Os indispensáveis afinal nunca o chegariam a ser se viessem a entrar na casta dos que exercem poder. Aí se veria que são tão indispensáveis como os que se abarbatam com as sinecuras que fazem sonhar uma pandilha de aspirantes sempre prontos a debicar nas carcassas dos eleitos que desaproveitaram a oportunidade, por inépcia ou por errada avaliação do público.
Gosto de me ver nos antípodas dos indispensáveis. Aliás, se fosse chamado a escolher alguém para comandar os desígnios da nação, de um ministério, de um organismo da administração pública, de uma empresa, ou de uma associação de defesa dos direitos dos animais, ou de um clube de bairro, ou apenas de um clube de fãs do José Cid (que de repente passou de proscrito a visionário), eu seria a última pessoa a ser escolhida.
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