Para os mais chegados, o espanto: sempre afirmei, com a convicção dos que têm certezas inabaláveis, que jamais iria a Cuba enquanto o ditador barbudo permanecesse no poder. Venho agora proclamar o desejo de visitar a ilha tropical enquanto o anacrónico ditador das barbas farfalhudas exercer a sua ditadura. A vida é feita destas contradições.
Note-se que a inversão de rumo não encerra a encomiástica do regime comunista que persiste em Cuba. E note-se que, por maior que seja a atracção pessoal por destinos turísticos exóticos, com os predicados das ilhas espalhadas pelas Caraíbas – o calor, a humidade, as águas transparentes e cálidas, a vegetação luxuriante, os povos acolhedores –, o desejo de visitar Cuba não se encaixa no protótipo do turista ocidental que se fecha no resort imune ao país real, ao país que está do lado de lá das amuralhadas fronteiras do resort.
Quero ir a Cuba para perceber in loco o que é o comunismo. Uma curiosidade histórica, para ver com os meus olhos um dos últimos esteios desse erro histórico chamado comunismo. Gostava de visitar as terras cubanas, andar no meio da população, fora dos roteiros turísticos que colocam o visitante numa redoma, fazendo com que os turistas regressem a casa com uma visão paradisíaca da ilha governada com mão de ferro pelo patético ditador. Testemunhar as vidas de sacrifício que os cubanos levam, oprimidos pela sórdida ditadura que os asfixia há décadas infindáveis (porque a actual ditadura substituiu a ditadura de Fulgencio Batista).
Não quero ir a Cuba para me deliciar com as praias paradisíacas dos resorts inexpugnáveis à população local. Esses resorts são um embuste do regime. Um expediente para sacar divisas aos turistas, na tentativa de escapar à miséria instalada; um logro em que hordas de turistas caem, convencidos que Cuba é o paraíso encerrado naqueles minúsculos locais onde passam o tempo. Também não vou a Cuba pelo turismo sexual. A monogamia do estado civil é impedimento maior (mas não o único). Nem vou a Cuba para soltar o corpo nos sons febris da música local, um convite à dança desinibida: a dança e o meu corpo são elementos dissonantes.
O folhetim da doença do tiranete, seguido da passagem de testemunho ao irmão sanguinário – mostrando que os regimes comunistas são surpreendentes oligarquias – serviu para, subitamente, desejar que a ditadura comunista se prolongue por mais um ano. Repito: não há qualquer simpatia com o regime. Nem estaria no horizonte alinhar com o censor prémio Nobel da literatura que escreve na língua portuguesa, que sempre andou de braço dado com o barbudo ditador, ou com o inefável Prof. Boaventura, no ridículo abaixo-assinado que avisa os Estados Unidos para deixarem Cuba em paz. É sabida a minha antipatia pessoal com os Estados Unidos; ainda assim consigo discernir as diferenças entre uma ditadura opressora (Cuba), onde as liberdades individuais estão manietadas, e um país (os Estados Unidos) onde existem eleições, onde as pessoas conseguem exercer as suas liberdades individuais (ainda que sobre elas pesem condicionantes que têm aumentado de intensidade). À cegueira ideológica de uns (o tal prémio Nobel da literatura) junta-se a oportunista colagem ao regime ditatorial de outros (o peregrino da alter-globalização), mesmo sabendo que, outrora, o regime foi denunciado por correligionários seus.
Sim, ir a Cuba e falar com as pessoas. Tentar perceber as privações por que passam – as materiais e as outras, as que não têm preço, as que resultam da opressão exercida pela ditadura. Perceber a miséria que asfixia o povo cubano; a indigência mental, pelas mordaças que impedem os cubanos de protestar contra a tirania que lhes leva as liberdades. Por uma vez, sentir na prática, no terreno, as feridas abertas pelo comunismo. Ver com os meus olhos um laboratório vivo do erro histórico chamado comunismo.
As elegias ao romantismo da revolução cubana, deixo-as para quem se entrega nos braços tentaculares da ideologia comunista. Para esses, as visitas aos lugares que representam a iconografia da revolução manchada com o sangue de quem ousou dissidir. Para esses – como um ingénuo jovem francês cujo testemunho vi passar na televisão –, o inebriamento das vicissitudes de quem passou meses a fio na Sierra Maestra, preparando o golpe que haveria de derrubar o ditador Batista. Pena que, para esses, o romantismo revolucionário passe uma esponja pelos anos que se seguiram à revolução: as execuções sumárias dos que se opuseram ao regime, a privação das mais elementares liberdades pessoais. É quando a História entra no domínio do sectário. Os olhos vêm apenas numa direcção. A que convém ao manto ideológico que cobre o horizonte dos que permanecem apaixonados pelo que acontece em Cuba.
Sim, quero ir a Cuba. Para reforçar convicções. E para que a liberdade dos cubanos seja uma aspiração feita realidade no curto prazo. Para que o comunismo entre, de vez, nos anais da arqueologia.
2 comentários:
Também eu quero ir a Cuba ainda com Fidel no poder. Não sei se vou ter essa sorte, pois não se sabe o real estado de saúde do "comandante". Ao contrário do PVM, nunca me recusei ir a Cuba simplesmente por ser comunista, essa afirmação é no mínimo surpreendente. Então que seria de Cuba sem os turistas?
Era o pudor ideológico. Perceber que os turistas do passado e os potenciais turistas indirectamente alimentam, através do turismo, um regime execrável. De acordo com testemunhos de amigos que já estiveram em Cuba, a população quase nada beneficia do turismo (a não ser quando tem que mendigar coisas banais como sabão – virtudes do racionamento comunista…).
PVM
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