Há uma enxurrada que parece inexorável. Uma corrente de água violenta, que empurra num só sentido. Ao fitar o horizonte, não se distingue onde leva o fio de água que corre tão depressa. Quem assenta nas águas tormentosas não sabe onde o destino o leva. Desconfias que no fim da corrente vertiginosa está um turbilhão preparado para sugar os incautos que se aventuraram na maré sentinela. Do alto do teu cepticismo, entras na água convencido de uma tarefa árdua: procurar o outro lado, sabedor que terás que remar contra a maré.
Vês como todos deslizam, preguiçosos, à bolina da maré. Não acreditas na generosidade da maré. Há uma estranha cor no céu, uma brisa venenosa, quente; o céu-da-boca estala com o estampido das águas que se desdobram em ondas que espumam uma raiva que te faz desconfiar. Imóvel não podes quedar. Uma decisão à espera. Duas alternativas: embarcar na maré venturosa, ou a monstruosa empresa de arcar com os remos e batê-los contra a força tenaz das águas que empurram na outra direcção. Não chega a ser um dilema. Habituado ao diletante espírito de contradição, conjecturas no que te espera quando encontrares a origem das águas que sopram a maré poderosa.
Nos primeiros instantes sentes a violência das águas que te empurram para trás. Convocas todas as forças. Os remos silvam ao contacto com a espuma que se desfaz neles. Com esforço, tragas a maré com a perseverança que te fez sair do casulo de quem olhava para a turba entretida água abaixo, sem saber o que lhe está destinado quando a maré desaguar no seu epílogo. A imagem do conformismo nutre as forças que combatem a energia da maré pujante. Cada remada é um doloroso uivo contra a quietude geral. A denúncia da condescendência com o que é imposto, nem que seja para mostrar que a dissidência desbrava avenidas de um olhar diferente sobre as coisas.
Estranhamente, o cansaço não te consome as forças. Remas sem parar, como se nem sequer fosse necessário dormir. Impõe-se vigilância sempre presente. Uma distracção, e serás empurrado ao sabor da maré que andaste a combater. Seria como voltar atrás. Começar tudo de novo, ou desistir. Seria como se todo um esforço amealhado fosse diluído em nada. Algures há-de estar um lugar onde a maré tenha parado, onde o espelho de água que corre célere numa só direcção seja um mar chão, tranquilo, o repouso para os guerreiros que ousaram desafiar a passividade reinante.
Na teimosia de remar contra a maré, cruzas com embarcações que erram sem destino, apenas apaziguadas pela indolente sapiência que as águas tormentosas as levam algures. Os tripulantes dessas embarcações olham-te com estranheza. Outros com indiferença. Outros não disfarçam semblantes que destilam a reprovação. Esses olhares ferozes enviam sinais: reprovam o desafio de quem combate a maré, porque acham que se a maré tem um sentido é porque é isso que faz sentido. É a reprovação dos marinheiros que erram ao sabor da maré que te revigora as energias. No teu íntimo, pedes aos deuses que enviem mais marinheiros que esbocem o esgar de reprovação.
Por entre o cansaço que te leva discernimento, interrogações em catadupa. Começas a duvidar aonde te leva remar contra a maré. A mesma incerteza do que esconde o horizonte para além da fonte que alimenta a maré. E se suspeitas que no final do fio de água está um envenenado turbilhão que traga quem se enleou nas bonançosas, traiçoeiras correntes da maré, as mesmas dúvidas acerca do que te reserva o fim do trajecto, assim que sentires o sabor adocicado de teres dobrado a força da maré. Não suspeitas sequer o que te espera no fim da maré vencida. Não sabes se o cenário é mais idílico, ou se ainda mais cavernoso que as suspeitas que teces sobre o estampido letal que a maré contínua contém.
Os braços doridos continuam a empurrar os remos contra a maré com as cores que te desagradam. Já não interessa descobrir onde te leva o lado contrário da maré. Cultivas a secreta esperança que a maré tenha um fim. Apenas. Só para saboreares a derrota sobre a maré dominante, a vitória pessoal contra a maré onde tantos embarcaram apenas porque as águas apontavam no sentido descendente. Pode até ser dantesco, infernal, copioso, o lugar que descobres depois de vergares a teimosia da maré. Valerá mais o feito pessoal, a persistência na arte de remar contra a maré e de teres chegado a um porto final. Pode não ser porto seguro. Será o porto que edificaste na convicção que tinhas que ir ao contrário da maré dominante. O que basta.
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