24.8.06

Não me toques que me tiras o brilho


Algures no meio do trânsito fluído de Agosto – e como apetece que Agosto se repetisse nos outros meses do ano – ouço um fait divers na rádio. Tom Cruise, convertido à cientologia, convidou uma estrela da música pop para sua casa. Impôs à convidada uma bizarra regra: não podia tocar no seu filho, um bebé com poucos meses. Consta que a cientologia, uma seita religiosa radical, impede que os seus membros troquem afectos corporais. Ouvi que faz parte do código educativo da seita impedir que as crianças se entreguem às carícias.

As religiões, na sua assombrosa alienação do ser, são pródigas em estultas imposições que adensam a diluição da liberdade individual. Regras de comportamento para tudo e mais alguma coisa. Umas misturam-se com regras de conduta social, sobretudo nas religiões que ou são oficiais ou foram-no antes de um país se tornar laico por ordem constitucional. Tão enraizada está a religião que os dogmas correm como sangue nas veias da sociedade. Um exemplo: a obrigação de convidar um cura para abençoar obra pública inaugurada com pompa e circunstância. Não vá o diabo tecê-las, há que ungir a obra com a água benta. Nem que haja nesta manifestação uma osmose entre o religioso e uma superstição que remete a cerimónia para o domínio do pagão.

As religiões, com cambiantes, não são simpáticas à libertação do corpo humano. Da história vêm exemplos repetidos de castração do corpo, de repudiação do sexo. Ainda hoje essas intoleráveis intromissões na intimidade do ser se multiplicam. É a teimosia autista da igreja católica em rejeitar métodos contraceptivos como instrumento de planeamento familiar. A mesma teimosia, agora adicionada à ignorância que revela como a igreja é uma anacrónica instituição, ao negar o uso de preservativos como protecção contra a SIDA. Ou a regra, zelosamente respeitada (assim fazem constar) pelos membros da Opus Dei, de apenas terem relações sexuais para procriar. Ou ainda a moral anti-sexual das testemunhas de Jeová (ainda hei-de escrever sobre isto). Agora os fanáticos da cientologia exasperam-se com o toque no corpo humano, nem que o toque seja uma carícia que é demonstração de afecto.

Tom Cruise não beija o filho quando ele desperta do sono nocturno. Cruise (e os outros fanáticos da cientologia) restringem ao mínimo o contacto da sua epiderme com a do filho, mesmo quando actos tão simples como a mudança da fralda, o banho, ou a mudança de roupa fazem parte do quotidiano. Porão luvas, para atenuar o contacto da pele própria com a pele da criança? Desconheço se a cientologia anda de braço dado com a Opus Dei, as testemunhas de Jeová e, no fundo, a igreja católica conservadora, na censura do sexo. Caso contrário, que voltas darão Cruise e companhia para o acto sexual? Só se for sexo por pinças…

Um dos males das religiões é o estado de alienação colectiva que faz um grupo de seguidores entregar-se de corpo e alma às orientações inventadas pelos guias espirituais. Não se questionam os dogmas. Seguem-se, ponto final. Questionar os dogmas pode ser interpretado como um desvio aos alicerces da crença. Para os mais intolerantes, é a porta aberta para a exclusão dos que questionarem os dogmas. Ninguém se interroga porque motivo os ideólogos da religião determinam esta ou aquela orientação. A obediência escrupulosa das imposições arbitrárias é peça determinante da pertença religiosa.

Eu gosto de afectos corporais. Gosto de cumprimentar os meus amigos, de os abraçar quando a distância temporal acentua as saudades. Gosto de beijar os meus pais, todos os dias que os vejo. Adoro sentir a pele suave da minha filha, acariciar os seus cabelos, emoldurar os momentos mágicos em que a pele das minhas mãos se mistura com a pele do seu corpo. Os afectos corporais com a cara-metade são (auto-censurado).
Olho para trás, como os afectos corporais são quase oxigénio para a minha existência, e mais incompreensível me parece a bizarra regra da cientologia. Vejo-os numa cerimónia solene em que são apresentados pela primeira vez a pessoas até então desconhecidas, recusando estender a mão à pessoa estacionada defronte deles: “a minha religião não mo permite”, perante o ar atónito do outro, ali de mão estendida. Terá o famoso dichote “não me toques que me tiras o brilho” sido inventado pelo primeiro adepto da cientologia?

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