Tenho pena das esquerdas mais à esquerda, órfãs de referências com a derrocada do muro de Berlim, com o desaparecimento da União Soviética, a sucessiva liquidação das ditaduras comunistas. Mais um episódio na “orfanização” de referências: Günter Grass, esteio literário destas esquerdas radicais, abriu o coração e confessou o seu tenebroso passado nazi. Não foi uma militância inócua em organizações conotadas com o regime nazi. O escritor foi membro das Waffen SS, um dos expoentes da maldade no labirinto nazi.
O choque foi generalizado. Grass andou meio século a enganar os seus admiradores. Nunca li nada da obra de Grass. Por palavras de outros, soube que Grass se destacou, entre outras coisas, por desafiar a Alemanha a sentar-se no divã para expiar os fantasmas do vergonhoso passado nazi. Mesmo a preceito das tais esquerdas que sempre se afadigaram em lembrar que o nazismo foi a nódoa mais negra da História da humanidade. Conveniências das militâncias ideológicas. Mesmo que muitos dos destacados liquidatários do passado nazi se esquecessem que o país que era a montra da ideologia que seguiam não andava muito longe do nazismo, no registo da opressão e das mortes arbitrárias. É um dos maiores atractivos das ciências sociais, mas ao mesmo tempo o seu maior risco: como o mesmo acontecimento se expõe a interpretações opostas, ou a discricionárias revisões históricas que apagam da memória episódios inconvenientes.
Já houve quem erguesse o dedo acusatório a Grass. A decepção falou mais alto. Sentem-se traídos por Grass ter escondido essa página pintada no mais negro que pode existir. São os que, de um momento para o outro, não hesitam em renegar toda a obra de Grass. Os mesmos que teciam loas à escrita de Grass são acometidos por uma fúria avassaladora que os faz rasgar os milhares de páginas escritas por Grass. Só lhes falta pedir que o prémio Nobel da literatura que recebeu em 1999 lhe seja retirado. A revelação torná-lo-ia indigno da comenda. Como se o que Grass escreveu, decerto com qualidade literária bem acima da média, fosse apagado das estantes porque o escritor vagueou nas fileiras das hediondas Waffen SS.
É o vício incorrigível de refazer o passado. Há dois aspectos que estão em planos diferentes. Um é Grass escritor. A qualidade da sua obra. Os méritos literários. O outro plano é o Grass “político” – político no sentido da posição que todos assumimos perante os fenómenos que nos rodeiam, o alicerce das filiações ideológicas. Os dois planos não se devem misturar. Há quem tenha capacidade para os separar: são os que reconhecem a qualidade da escrita de alguém que assume posições políticas extremistas, fora do teor politicamente correcto para os dias que correm. Que não haja ilusões: na maior parte dos casos, esta condescendência existe porque o escritor se revelou antes do “político”. Duvido que alguém que venha a público assumir posições políticas controversas – para os padrões medianos – e depois enverede pela carreira literária chegue ao estrelato literário. A sua escrita há-de estar manchada pelo preconceito prévio de quem ajuizou as suas posições políticas.
Este episódio mostra a coragem de alguém para expor segredos escondidos décadas a fio. Segredos que, sabe-se agora, teriam o condão de voltar meio mundo contra quem os revelou. Note-se que não estou a fazer as vezes de advogado de defesa de Günter Grass. Porque não é recomendável o seu passado nazi. É cómodo ajuizarmos o passado dos outros, como se os telhados de vidro apenas adejassem as vidas deles, nunca as nossas. Imagino o tormento que Grass viveu todos estes anos, o cárcere privado em que a sua mente mergulhou. Alguns dirão, contra Grass, que escondeu o passado nazi por vergonha. Também se pode argumentar que Grass se arvorou na consciência crítica da Alemanha pós-nazi como íntima expiação dos seus fantasmas. Ainda se dirá que Grass antecipa a hora da morte, não querendo levar consigo esta mácula do seu passado. Como figura pública, quis partilhar com o público um pecadilho que o atormenta. Mesmo sabendo que um exército de admiradores estaria na linha da frente para denunciar a vergonha que se abateu sobre o escritor.
Deve ser doloroso remexer no passado sem orgulho, expor publicamente essas páginas enlameadas. O comportamento habitual deve ser reservar os segredos que envergonham. Grass teve a coragem de se auto-denunciar. Ou apenas foi um golpe de mestre para promover a sua auto-biografia (“Descascando a Cebola”), uma simples mas engenhosa estratégia publicitária. Entretanto, Grass está nas mãos dos tribunais populares que o julgam impiedosamente. É da natureza humana, esta tendência para despromover heróis à condição de vermes. Grass agradece: o livro esgotou assim que tocou os escaparates.
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