As pessoas dizem “fui à aldeia”, na exibição de um brilho nos olhos de quem se orgulha das raízes aldeãs. Todas as pessoas que conheço que se exilam na sua aldeia fazem-no na urgência de saciar as dores de serenidade que a grande cidade inspira. Há aqui uma confluência de contrastes: a grande cidade, com o seu bulício impessoal, floresta de casario que parece não ter fim, ar carregado que cansa a cada golfada inspirada, feiura dos edifícios na arquitectura desordenada; e a aldeia, reduto da placidez humana, singelo presépio de casas onde todos são vizinhos, a enquadrar campos, vales, montanhas que tocam as nuvens que adejam sobre o casario, o ar tão límpido que dá a sensação de purificar a alma.
Este é um contraste de gerações, também. Pelos exemplos da minha geração e da geração dos meus pais. Quase todos os meus amigos nasceram na cidade. E quase todos os pais dos meus amigos vieram da província até à grande cidade, num êxodo que a década de sessenta testemunhou, começando Portugal a perder a sua ruralidade entranhada através da fuga maciça dos campos até às grandes urbes.
Imaginários diferentes, quando as duas gerações esquadrinham raízes. A geração dos nossos pais ainda presa à ruralidade. Repetida necessidade de visitar a distante aldeia, onde regressam às origens. Como se fosse imperativo mergulhar nas raízes para o reencontro com a essência de si mesmos. Na aldeia recupera-se a genuinidade que a grande cidade pervertia. Pelas pedras das calçadas, entre o verde refulgente dos campos em redor, percebe-se que aquelas pessoas são aldeãs na sua plenitude. E percebe-se, talvez, como nadam em águas pesadas nos longos dias da faina citadina. Imagino quão dolorosa terá sido a decapagem da província, quando se instalaram na imensidão urbanística.
Quando as escuto a dizer “fui à aldeia”, o brilho no olhar é sintomático da oxigenação quando escapam à floresta de anódinos edifícios. A voz revigora-se quando confessam a viagem às entranhas do seu passado. É a forma perene de resgatarem a meninice feliz vivida no bucolismo da aldeia perdida entre vales e serranias. Noutro contraste gritante: houvesse mister de retratar esse tempo distante e perceber a ausência de condições de bem-estar, naquilo que hoje são os ingredientes consabidos do bem-estar – electricidade, água canalizada, esgotos, televisão. E, no entanto, mostra a contemplação dos dias todos vividos na lonjura da aldeia que nem a ausência destes ingredientes furtava a felicidade desnudada pela saudade dos tempos idos.
A minha aldeia é a grande cidade que me viu nascer. Onde sempre vivi. Escapam-se as referências ao bucolismo dos campos, dos animais nos pastos, dos pastores de abalada para uma temporada de isolamento no alto dos montes. Ou do trabalho da lavoura, da poda das árvores de fruto e dos vinhedos, do arrotear das terras que se roubavam da desordenada incultura. Não foi na grande cidade que me habituei ao adocicado odor libertado pelas lareiras durante o frio invernal. Da grande cidade guardo as imagens dos altos edifícios acotovelados onde as pessoas vivem acanhadas, sem um espaço verde para refrescar a respiração nos tempos livres. E os carros em loucas correrias nas manhãs que são sempre de atrasos, ou no entardecer que traz cansados autómatos de regresso aos lares impessoais.
Da minha urbana condição, há algo de estranho quando ouço as pessoas dizerem “fui à aldeia”. Até hoje não percebi se é inveja, salutar inveja, quando as vejo extasiadas a contar as coisas mais corriqueiras da deslocação às entranhas do passado petrificado nas paredes e ruas da aldeia. E nem quando ia como passageiro das memórias dos meus pais de visita às suas origens me sentia engrenagem da aldeia. Antes, um corpo estranho. Todo aquele silêncio, as pessoas que amavelmente me saudavam na rua, as pedras frias da casa, o rumorejar das águas do regato, os montes que cercavam a aldeia por todos os lados, a paisagem de uma beleza esmagadora, a hospitalidade dos aldeãos (num ríspido contraste com o impessoal trato a que me acostumei na grande cidade) – tudo passava diante dos meus olhos como um retrato que se fazia corpo estranho. Até hoje, nunca consegui inculcar uma aldeã forma de viver nos poucos dias de visita às aldeias, às muitas aldeias onde pernoitei.
O imaginário não se força. As raízes são consumadas pelo tempo. Os locais que trazem até nós as raízes pessoais são um templário que nos foi destinado, algo que não temos a capacidade de mudar. De tanto urbanismo enraizado, sou assaltado por um paradoxal sentimento de asfixia dos elementos quando estou de visita a qualquer aldeia. Falta-me a selva de betão armado, o burburinho das pessoas apressadas que ignoram outros transeuntes, o ar plúmbeo que infecta a saúde.
Este é um contraste de gerações, também. Pelos exemplos da minha geração e da geração dos meus pais. Quase todos os meus amigos nasceram na cidade. E quase todos os pais dos meus amigos vieram da província até à grande cidade, num êxodo que a década de sessenta testemunhou, começando Portugal a perder a sua ruralidade entranhada através da fuga maciça dos campos até às grandes urbes.
Imaginários diferentes, quando as duas gerações esquadrinham raízes. A geração dos nossos pais ainda presa à ruralidade. Repetida necessidade de visitar a distante aldeia, onde regressam às origens. Como se fosse imperativo mergulhar nas raízes para o reencontro com a essência de si mesmos. Na aldeia recupera-se a genuinidade que a grande cidade pervertia. Pelas pedras das calçadas, entre o verde refulgente dos campos em redor, percebe-se que aquelas pessoas são aldeãs na sua plenitude. E percebe-se, talvez, como nadam em águas pesadas nos longos dias da faina citadina. Imagino quão dolorosa terá sido a decapagem da província, quando se instalaram na imensidão urbanística.
Quando as escuto a dizer “fui à aldeia”, o brilho no olhar é sintomático da oxigenação quando escapam à floresta de anódinos edifícios. A voz revigora-se quando confessam a viagem às entranhas do seu passado. É a forma perene de resgatarem a meninice feliz vivida no bucolismo da aldeia perdida entre vales e serranias. Noutro contraste gritante: houvesse mister de retratar esse tempo distante e perceber a ausência de condições de bem-estar, naquilo que hoje são os ingredientes consabidos do bem-estar – electricidade, água canalizada, esgotos, televisão. E, no entanto, mostra a contemplação dos dias todos vividos na lonjura da aldeia que nem a ausência destes ingredientes furtava a felicidade desnudada pela saudade dos tempos idos.
A minha aldeia é a grande cidade que me viu nascer. Onde sempre vivi. Escapam-se as referências ao bucolismo dos campos, dos animais nos pastos, dos pastores de abalada para uma temporada de isolamento no alto dos montes. Ou do trabalho da lavoura, da poda das árvores de fruto e dos vinhedos, do arrotear das terras que se roubavam da desordenada incultura. Não foi na grande cidade que me habituei ao adocicado odor libertado pelas lareiras durante o frio invernal. Da grande cidade guardo as imagens dos altos edifícios acotovelados onde as pessoas vivem acanhadas, sem um espaço verde para refrescar a respiração nos tempos livres. E os carros em loucas correrias nas manhãs que são sempre de atrasos, ou no entardecer que traz cansados autómatos de regresso aos lares impessoais.
Da minha urbana condição, há algo de estranho quando ouço as pessoas dizerem “fui à aldeia”. Até hoje não percebi se é inveja, salutar inveja, quando as vejo extasiadas a contar as coisas mais corriqueiras da deslocação às entranhas do passado petrificado nas paredes e ruas da aldeia. E nem quando ia como passageiro das memórias dos meus pais de visita às suas origens me sentia engrenagem da aldeia. Antes, um corpo estranho. Todo aquele silêncio, as pessoas que amavelmente me saudavam na rua, as pedras frias da casa, o rumorejar das águas do regato, os montes que cercavam a aldeia por todos os lados, a paisagem de uma beleza esmagadora, a hospitalidade dos aldeãos (num ríspido contraste com o impessoal trato a que me acostumei na grande cidade) – tudo passava diante dos meus olhos como um retrato que se fazia corpo estranho. Até hoje, nunca consegui inculcar uma aldeã forma de viver nos poucos dias de visita às aldeias, às muitas aldeias onde pernoitei.
O imaginário não se força. As raízes são consumadas pelo tempo. Os locais que trazem até nós as raízes pessoais são um templário que nos foi destinado, algo que não temos a capacidade de mudar. De tanto urbanismo enraizado, sou assaltado por um paradoxal sentimento de asfixia dos elementos quando estou de visita a qualquer aldeia. Falta-me a selva de betão armado, o burburinho das pessoas apressadas que ignoram outros transeuntes, o ar plúmbeo que infecta a saúde.
2 comentários:
Um ótimo texto. Muito bom!
e eu só estava procurando por desenhos de cidades no google.
ótima análise
e outras considerações
continue.
http://jornalismob.wordpress.com/2008/08/14/a-cidade-nos-meios-de-comunicacao/
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