22.3.07

David feito Golias


Há muitas formas de ser Golias e David. No concerto das nações, muitos fazem o papel de amestrados David. Poucos alcançam a qualidade de Golias. O curso da história é um movimento contínuo que altera estatutos dos países. Alguns emanciparam-se da sua pequenez tradicional e hoje ostentam uma soberba típica de quem passou anos a fio dependente dos poderosos. Invertem-se os papéis. A lógica dos negócios fornece a ajuda que falta para cimentar a nova geopolítica de interesses, para a metamorfose de David em Golias.

Angola mostra, a cada passo, a grotesca arrogância de quem procura exibir uma grandeza internacional conquistada em troca da satisfação dos interesses dos grandes países: na extracção do petróleo que abunda e noutros negócios faustosos, dos diamantes à construção civil – sobretudo aqui, que há um país imenso destruído pela desonrosa guerra civil que dizimou um país tão farto de riquezas naturais. É inquietante ser espectador da relação desequilibrada entre as autoridades angolanas e os sucessivos governos que mandam desde o Terreiro do Paço. Como se fosse um passe de magia determinado pela alvorada dos novos tempos, o antigo colonizado marca a agenda do anterior colonizador. Com a aquiescência deste, que parece adormecido sob a batuta do fardo do passado, dos deveres morais que parece arcar pelos excessos das gerações anteriores. Uma dor de consciência que expede ministros lusos para um covarde silêncio perante a pesporrência habitual das autoridades angolanas. Um exemplo acabado de prepotência internacional, com o conivente acocorar dos governos lusitanos.

Custa-me a inversão do tabuleiro, a insidiosa verborreia dos angolanos mostrando sede de vingança do passado colonial. Fazem-no porque percebem a passividade das autoridades portuguesas. Não concordo com os anacrónicos personagens que ainda defendem que Angola nos deve respeito. O que deve existir é uma relação equilibrada, sem um dominador e um dominado. Nem muito menos um cabisbaixo ex-colonizador, que persegue a interminável via-sacra de colonizador de antanho, com o habitual consentimento perante a arrogância dos angolanos. Como se essa arrogância limpasse o registo passado, obliterasse exageros e crimes da colonização (que os houve – e não com comedimento). Que me seja perdoada a ingenuidade, mas nunca entendi as relações (e as reacções) que se alicerçam na mais pura das vinganças.

O recente episódio tem a mácula do caricato. Um futebolista angolano, com contrato com um “grande clube” (dizem que é o “maior clube do mundo” …), foi apanhado ao volante com uma carta de condução carimbada por Angola, algo que é inválido por terras lusas. Dias depois, na mais arbitrária das retaliações, os polícias de Angola foram à caça de portugueses ao volante. Funciona a reciprocidade: se as cartas de condução angolanas deixaram de ter validade em Portugal, eis um decreto que vem por telepatia até Angola, deixando as portuguesas de habilitar à condução nas estradas angolanas.

Não chegou a incidente diplomático. Não houve protesto pela obscena perseguição com o odor fétido da vingança. Os cidadãos lusitanos, incomodados pela polícia e sujeitos ao humilhante crivo da condenação por um tribunal angolano mancomunado com o poder político, não foram defendidos pelo governo do país que os viu nascer. Por estes dias, o ministério dos negócios estrangeiros terá esquecido, com oportunismo, que Angola existia. Para não beliscar os interesses económicos portugueses espalhados por Angola. A isto chama-se arbitrariedade, assimetria nas relações entre países. Um país refém do outro, em nome da sacrossanta economia. Muito me custa ser observador disto: de como nos pomos em cócoras perante a sobranceria de Angola; e de como a economia, que tanto prezo como ciência, assobia para o ar quando valores fundamentais são atropelados porque os interesses económicos assim o aconselham.

É que, lá diz o adágio, quanto mais alguém se rebaixa, mais se lhe vêm os fundilhos. Qualquer dia, aprendizes de tiranetes angolanos (daqueles que aplaudem o muito democrático e respeitador dos direitos humanos regime do Zimbabué) tomam as rédeas desta lamentável terrinha. Será outro tempo para pensar no obrigatório exílio.

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