19.3.07

Uma bebedeira de povo


Uma certa cultura faz a sagração do povo. É lá que se encontram os sentimentos espontâneos, a entrega descomprometida, alguma ingenuidade que impede o genuíno povo de ser farsante da tragicomédia alimentada pelos poderosos. Por mais que seja aliciante engrossar a tendência de glorificação do povo – quantas vezes como instrumento de uma demagógica formatação ideológica – ando em descompasso com o povo profundo que tem as luzes da ribalta sobre si com a boda entre a comunicação social e um pulsar democrático popular.

É recorrente: dar a voz ao povo, porque o povo é a raiz do poder. E quando o povo leva vencimento num pleito e a verdade se aproxima da justiça popular, mais são os motivos para festejar. A dar razão ao imaginário cultivado em formas menores de teatralização, aquelas que o povo consegue discernir nas suas curtas vistas – novelas a rodos e filmes de terceira categoria. Nessas tumefacções da arte a mensagem sublima-se: há sempre um final feliz, os cavernosos fautores do mal chegam ao fim da linha sem compensação pelas aleivosias cometidas. Os bons acabam por recolher a recompensa pela ética postura, os maus são desmascarados, eventualmente condenados a recolhimento prisional.

A mais recente manifestação da sagração do povo vem do norte, após a polícia ter encontrado um bebé raptado do hospital de Penafiel, ainda recém-nascido. (Foi patético assistir a uma conferência de imprensa onde um director da polícia judiciária puxou dos galões, clamando os louros da vitória por ter “deslindado” o caso. Em momento algum admitiu que só conseguiu “deslindar” o caso porque houve uma denúncia da mulher raptora. Escusava o senhor agente de fazer tão gritante confissão da incompetência da polícia judiciária.)

Logo o circo mediático foi montado na pequena aldeia onde residem os pais da bebé raptada. E assim pudemos ser testemunhas do pulsar popular, da comovente solidariedade de todos para com os pais que reencontraram a filha furtada dos seus braços. Como enternecedor foi o terço rezado em uníssono, uma prece de agradecimento aos santos e santas de devoção daquele povo, golpe rude na auto-estima dos agentes da polícia judiciária que não foram agraciados por terem “deslindado” o caso. De seguida, a autorizada voz do povo passou pelas câmaras da televisão numa sucessão infindável de sentenças que pontuam as certezas incontestáveis que assistem sempre ao povo. A meio do caminho, um desvio até ao tribunal de Penafiel, onde a raptora foi interrogada e depois encaminhada para prisão preventiva. Seria de estranhar que o povo não fizesse uma inconsequente espera à porta do tribunal. Com as costumeiras excitações contra os juízes que não sabem praticar a verdadeira justiça, aquela que o povo faria com as suas mãos tivesse ensejo de provar que vivíamos num lodaçal ainda mais caótico que o actual.

Tivemos ainda direito a carinhosas manifestações de entrega material do povo: roupas, brinquedos, até uma cotização colectiva para fazer obras na casa do agregado familiar, para a bebé ter condições para crescer como deve ser. O zénite: uma festança popular celebrou o apogeu da justiça e do bem, que – como sabemos – acabam sempre por vir à tona. Aconteceu no dia em que a bebé ingressou no lar a que pertence. E ainda que os especialistas tivessem recomendado o recolhimento da bebé, o povo exigiu a sua presença na celebração colectiva. Se era o motivo da festança, ela que viesse temperar com a sua presença a festa que a homenageava. O povo exigia. O povo é penhor da razão. Faça-se a vontade ao povo. Não interessam os preciosismos dos especialistas que aconselhavam o recolhimento da bebé.

Lamento o meu pessimismo antropológico. O povo que aprenda que raras são as vezes em que o “bem” triunfa sobre o “mal”. O povo sabe-o, pratica-o à primeira oportunidade. Quando o povo ambiciona transformar a vida real no prolongamento da novela lamechas é um lampejo daquilo que nega a cada dia que passa. Uma expiação de pecados individuais, no ensejo de fazer a sagração colectiva do bem através da exposição de um mal maior praticado por um entre eles.

É por estas alturas, na condoída sensação da áspera ignorância do povo, que percebo que a igualdade é uma miragem. Um atalho que ofusca desigualdades que oportunistas querem iludir só para captar a simpatia das maiorias que depois lhes permitem deitar a mão ao poder. Por entre a espuma das aparências, o povo é o mostruário da desigualdade. De como a desigualdade é a negação prática da excitada igualdade vindicada.

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