1.3.07

O samurai sem espada

Em pleno dia, vagueava entre os transeuntes. Dir-se-ia que errava de olhos fixados no chão, à procura dos pequenos seixos que mostrassem a fortuna desencontrada. Trajava fatiota de judo numas botas de cowboy. Cinturão negro tinha sido. Ao peito, ostentava uma medalha com garbo. Sinal de feitos desportivos de outrora, ou apenas o resgate da glória desgastada nas armadilhas do tempo. Quando se cruzou comigo, por momentos os olhos hastearam o horizonte. Pude distinguir um olhar petrificado, o esconderijo da insanidade que aparentava.

Nesses breves instantes de olhar erguido, parecia que ia investir contra mim. Logo arremeteu pela esquerda, desviando-se abruptamente do caminho que vinha traçando. Por ali andou em esquadrias invulgares, como se o caminho fosse feito de arestas lancinantes que evitava dobrar. Um andar cambaleante, na posse orgulhosa do traje de arte marcial, um andrajo há longo tempo sem vistoria do detergente, tão encardido se apresentava.

Às vezes tomava a medalha nas mãos e estacava, fitando o céu. Não sei se fazia as suas preces, convocando providencial ajuda para se libertar do quarto escuro onde se encerrara. A medalha deixava o seu leito sobre o peito e levitava em direcção do rosto. Ali ficava, por uns segundos, erguendo a medalha bolorenta ao céu, como se estivesse a perguntar ao seu bom deus porque o tinha abandonado. Porque o tinha entregue nos farisaicos braços da loucura. Depois rejeitava a medalha. Com um gesto seco, tirava-a do pescoço e retinha-a nas mãos, abanando a fita amarela onde a medalha estava pendurada. Até que a atirava com fragor para o meio do jardim. Ajoelhou-se e, de cabeça metida entre os joelhos, ficou inerte por algum tempo. De repente, de supetão, pulou a cerca do jardim e vasculhou entre os arbustos em demanda da medalha. Cansado do passado glorioso que queria enjeitar, percebendo que a tresloucada condição só lhe deixava um árido deserto onde não apetecia vegetar.

No reencontro com a medalha, desempoeirou-a. Esfregou-a no traje de judoca. Insistiu na limpeza, por uma incrustação da medalha alojar um pedaço de terra húmida que teimava. Esfregou a medalha contra a manga da farda, com irritação. Encaminhou-se, em passos lentos, para fora do canteiro. Sem reparar onde pisava, por entre arbustos e plantas calcadas pelas botas pesadas. Ao lado, uma mão cheia de crianças entretidas nas brincadeiras que exalam inocência. O eco dos gritos das crianças despertou a atenção do campeão do judo. Parecia afinar a vista à procura das crianças. Apressou o passo em direcção delas.

Esboçou um largo sorriso – pela primeira vez, um esgar diferente da cara aluada que sempre mostrara. Tirou a medalha para presentear uma das crianças. Desconfiada, afastou-se da oferenda. Um companheiro mais destemido aproximou-se da mão estendida que balanceava a medalha. A criança perguntou-lhe o nome, mas tudo o que obteve foi um emudecido silêncio. E um tímido sorriso que descongelou aquele olhar petrificado. Naqueles instantes, o louco rapaz resgatara a infância de que tinha uma vaga reminiscência. A criança tomou-lhe a medalha das mãos e desatou a correr, ladeira abaixo. O rapaz ficou apático. Dir-se-ia que o desprendimento da medalha ceifara subsistência, manietados os sentidos. Dali perto acudiu-lhe uma menina com um vestido cheio de cornucópias. Tomara-se de comiseração ao reparar na inquietação triste que se apoderara do rapaz tão generoso. Deu-lhe a mão e começou a correr, levando o rapaz atrás. Em perseguição do astuto menino que já trajava a medalha à cintura, esvoaçando-a em piruetas à volta de um lampião.

O louco rapaz ensaiou um grunhido de desaprovação. Apontou com o dedo para o cinturão negro, em tom ameaçador. E olhou ao céu, uma vez mais. Assustada, a criança devolveu a medalha. E logo ali o louco rapaz retomou o seu mundo particular, abandonando a piedosa menina que o tinha acudido, sem sequer um agradecimento. De repente, o louco rapaz entrara noutro mundo. Imperturbável, prosseguia o caminho errante, como se andasse à cata dos pequenos seixos que haveriam de decifrar a saída do labirinto. E por ali foi, em passos irregulares, esbracejando de vez em quando, sempre com o olhar pregado ao solo. Até desaparecer do meu horizonte.

Há sempre uma tremenda perturbação com a insanidade andante. Inquietantes, os insondáveis meandros das mentes dominadas pelo amplexo da loucura. Interrogo-me: se a posse dos corpos pela madrasta loucura será refúgio onde se esquadrinha a ventura que jamais os visitou nos esclarecidos tempos.

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