15.3.07

As traseiras dos automóveis, que tanto contam


As mensagens veiculam-se de formas tão diferentes. Há a palavra, o altar-mor da comunicação. Mas também as imagens, símbolos, formas de estar, até os silêncios. Há imagens que falam por mais que mil palavras. Símbolos que se descerram em ocasiões especiais, iconografia particular de quem está em transe para difundir um retrato pessoal para outros tomarem conhecimento. São como voyeurs ao contrário: desnudam-se perante os transeuntes que olham para aquilo que garbosamente querem mostrar.

As traseiras dos automóveis são um mural vivo onde apetece demorar. Vemo-las quando estancamos na fila de trânsito, quando percorremos as ruas da cidade a pé e o olhar se cruza com automóveis estacionados. Ou quando, no aleatório devir, calha em sorte uma sucata profusamente ornamentada nos instantes em que o semáforo impede a marcha. As traseiras dos automóveis descobrem um mundo heterogéneo de preferências individuais. Que, estranho eu, mostram o afã do povo na exposição pública, como se houvesse a necessidade perene de abrir as janelas de casa e exibir a decoração interior. Afixar dísticos na traseira dos automóveis é como devassar a sala de estar em plena noite através das cortinas recolhidas.

Os donos têm orgulho no que mostram através da simbologia. E assim vamos conhecendo, na mudez ensurdecedora das imagens afixadas na retaguarda dos automóveis, os gostos dos concidadãos. É o automóvel que ostenta a sombra de uma Penélope, percebendo-se que o proprietário passou as férias da sua vida na divinal Benidorm (ou, como o povo se habituou a soletrar, na obliteração economicista do vocábulo, “Benidor”). O jovem com cabelos cor de banana, música trance em gritos audíveis à distância, que faz saber aos demais que é fanático pelo surf, a crer na prancha colorida que enfeita a traseira do Volkswagen Golf. Há também adeptos do futebol que anunciam ao público as cores clubistas da preferência através de um galhardete que balouça pendurado no espelho retrovisor. Alguns saudosistas da monarquia colam na traseira divisa alusiva ao Portugal dos reis em que gostariam de viver: a bandeira azul e branca que seria oficial se a monarquia derrubasse a vigente república. É norma o condutor ostentar farfalhudo bigode, religioso praticante que, todavia, se gaba da sua misantropia inexcedível. Lá dentro a música entoa os acordes do sucedâneo de fado trinado pela voz de arremedos de fadistas que exultam com tourada e prestam vassalagem a sua excelência o pretendente a um trono inexistente.

Também já deparei com mensagens indecifráveis: símbolos que não permitem distinguir a mensagem, ou palavras que soam a nada na sua avulsa condição. Ainda a necessidade latente de mostrar aos outros uma condição, uma pertença, uma afinidade. Ou, quando muito, espicaçar a curiosidade nos que olham demoradamente para aqueles símbolos ou palavras que, sozinhas, nada revelam. Um desnudamento menor.

Às vezes apetece andar de câmara fotográfica sempre a tiracolo, preparada para captar automóveis diversos que surgem na rua com a traseira enfeitada com imagens ou dizeres. Apetece emoldurar essas imagens e palavras e fazer o registo, decifrar o sentido dos símbolos e palavras que não dizem nada, e a estatística da parafernália que atraiçoa a estética dos automóveis circulantes. Cientistas sociais – da sociologia, à antropologia, à psicologia – teriam terreno fértil para investigações com direito a programas financiados. Teriam que interpretar: o que determina as pessoas a adornarem as traseiras dos automóveis; os motivos desvelados pela simbologia, o que querem mostrar os proprietários ao enfeitar as traseiras dos seus veículos; e a reacção dos transeuntes quando deparam com automóveis adereçados com estes símbolos – se lhes desperta a curiosidade, o significado que atribuem à mensagem veiculada pelos donos dos automóveis de traseira codificada, como reagem quando palavras e imagens que ornamentam os automóveis vão contra as suas convicções. E se não acham que esta fobia de ornar a parte de trás dos carros não atenta contra a estética.

Não há algo do doentio quando alguém exibe um gosto pessoal, uma recordação de férias, a preferência musical, o clube do coração? É todo um eu que se vomita para a rua, as entranhas reveladas a quem ali passar. Não sei se o decoro entrou em desuso.

Sem comentários: