16.3.07

Maravilhas do Estado polícia


Pacatez da lota de Setúbal. Prestasse tributo à verve literária dos neo-realistas, destilava uma descrição exaustiva da sacrificial vida dos pescadores e de quem vende o peixe descarregado na lota. Não cultivo o estilo. Mas agride-me saber que a curatela da imagem do governo socrático exige operações de cosmética para impressionar o público. Ontem havia ordem de soltura para os operacionais de um organismo que anda na ribalta – a ASAE. Entraram de rompante na lota de Setúbal, empunhando artilharia pesada, e fiscalizaram o local de fio a pavio.

A operação só teria sentido se a comunicação social fosse convidada para o festim. A bem do impacto desejado. O cidadão atento é convidado, através da ingenuidade inoculada pela propaganda governamental, a aplaudir o afã sanitário do governo. Dirá: “é para o bem de todos nós”. A dúvida metódica, que instala a suspeita permanente sobre este governo, impede-me de concordar. A operação podia ser eficaz sem a espectacularidade mediática. A partir do momento em que as câmaras de televisão foram amesendadas nesta operação de força bruta, desce o pano sobre o verdadeiro cenário. Os interesses sanitários são um pretexto que compõe a imagem, sempre a imagem e nada mais que a imagem, do governo.

O jornalista falou em “operação policial”. Só por distracção, ou por ter os ouvidos enxameados pelo fazedor de imagem de serviço, não relatou o que ali se passou. Quando os operacionais vêm acolitados por uma brigada de agentes encapuzados e armados até aos dentes, falar em “operação policial” é um sofisma. O que ali estava encenado era uma operação militar. Não fosse o diabo tecê-las, e os pescadores revoltados começassem a insubordinação, o melhor era prevenir desacatos. O arsenal era vistoso. Armas de porte majestoso, com o previsível efeito dissuasor de altercações de pescadores mais exaltados. Como se sabe, os pescadores de Setúbal distinguem-se pela terrível violência. Consta que há milícias formadas, com armamento pesado, que espalham terror pela cidade. Só assim se entende a operação militar montada.

A imagem conseguida foi diferente da pretendida pelos feitores da imagem governamental: o humilde povo pescador setubalense revoltou-se contra a desproporção de força ali exibida. Em vez da operação apaziguar os ânimos, a forma como foi instrumentalizada, com trejeitos de exibição de autoridade, teve o efeito contrário. Se dúvidas houvesse, há gente neste governo que confunde autoridade com autoritarismo. O poder deslumbra uns quantos. Inebriados pela bebedeira do poder, em dois actos perdem as rédeas da sensatez e abusam do poder.

Esta gente está espalhada por todo o lado e adora puxar os galões pessoais como imposição afirmativa da razão que julgam ser seu monopólio: são os engenheiros que nas reuniões de condomínio dissertam sobre questões técnicas, apenas porque “são engenheiros”; ou os bancários que julgam ser o escol do país, fosse a condição de bancário um feito notável só ao alcance dos iluminados; ou o estigma do “presidente da junta de freguesia”, em tempos tão bem retratado por Herman José. Quando estes personagens herdam poder não resistem à tentação de o ostentar. Pouco mais fazem durante o mandato senão exibir o poder que os deslumbra, atirá-lo à cara dos que se subordinam à sua lídima autoridade. É a página de ouro registada no seu álbum de memórias. Para memória futura, quando contarem à descendência que um dia também foram gente muito importante.

Não me sinto seguro com o Estado polícia que está montado. Há pretextos mil para cercear as liberdades. A cada passo, a manietação das liberdades, sempre embrulhada em razões de segurança que nos tentam convencer que o indivíduo deve ceder lugar aos imperativos do colectivo. O militarismo que campeia, até para operações que de tão corriqueiras sempre dispensaram os adereços militares, é um sintoma do cerco que se aperta. E quando temos um ministro, delfim do primeiro, que em blogue pessoal que se mistura na página do ministério que tutela desmonta quem tem a ousadia de o criticar em páginas da imprensa – ó suprema heresia, haver quem não concorde com sua excelência – e ameaça, em bom estilo trauliteiro, “da próxima vez, senhor jornalista, pense duas vezes antes de criticar”, está tudo dito.

É a ameaça institucionalizada. Só falta, como nos tempos de antanho, desafiar o adversário para um duelo de armas. E se há alturas em que apetece descer do altar da não-violência, é para dizer ao ministro Costa que a sua coragem física não amedronta ninguém. É aí que apetece partir a cara de um ministro que destila intolerância e pesporrência.

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