De Berlim. Recheadas com creme de ovos, abundantemente polvilhadas por grossas pepitas de açúcar. Servidas nas praias do Algarve, depois de um banho de mar. Preenchem o meu imaginário. Hão-de deixar, por imposição da inquisitorial ASAE que zela pela nossa saúde. Cientistas descobriram mais perigo para a saúde pública. Bolas de Berlim com creme recheadas não andariam acondicionadas de harmonia com as regras de higiene. Hão-de ainda descobrir, com anos de distância, um número muito rigoroso de mortes que se ficaram a dever à incúria, de braço dado com a insuportável gula, de tragar uma tragicamente deliciosa bola de Berlim recheada com creme de ovos no meio do areal algarvio.
A ASAE é nossa amiga. Dormir descansados, é o que nos resta por sabermos da mera existência da ASAE. Os fiscais desdobram-se em actividades mil, perseguindo os empresários do sector alimentar que espezinham elementares normas de higiene. Vamos às lotas e temos a certeza que o peixe é todo fresco. Vamos às pastelarias e temos a certeza que durante o processo de fabrico das guloseimas os cozinheiros não puseram um milímetro de tecido cutâneo nas massas. Descansados, assentamos arraiais nos restaurantes, que o pessoal nos bastidores foi todo industriado para respeitar os procedimentos de higiene. As doenças causadas pela manipulação indevida de produtos alimentares vão acabar. A ASAE merece comenda a 10 de Junho. Se ela for esquecida, abaixo-assinado para o esquecimento ser reparado no ano vindouro.
É que nem se imagina o sacrifício dos agentes da ASAE em plena fiscalização. As condições de trabalho, penosas, fazem deles heróis. Zelosas brigadas espalhadas do Barlavento ao Sotavento algarvio, palmilhando tórridos areais com o radar afinado para homens de branco que carregam a tiracolo a bolaria. Fico com uma dúvida ao tirar o retrato da actividade inspectiva. Os fiscais da ASAE andarão à paisana, disfarçados de comuns banhistas, apenas com o calção (versão masculina) ou com um discreto biquíni (as funcionárias)? Ou terão que farejar os possíveis infractores dentro de roupa não estival, enfardando ainda o colete azul-escuro que patenteia os dizeres “ASAE” em letras garrafais, em manifesta ostentação da autoridade? Imagino o pânico dos vendedores ambulantes: em cada banhista, tanto há um cliente potencial como potencial fiscal da autoridade fitossanitária.
Se os fiscais forem autorizados a vaguear pelas praias em trajes banhistas, acautela-se a penosidade da função. Poderão suportar o calor da estação em trajes apropriados e, nos intervalos da pesquisa inspectiva, tostar a pele e depois refrescá-la nas águas tépidas. É que assim o disfarce é mais perfeito. Se estiverem empenhados na fiscalização e não tiverem olhos para mais nada (nem para as beldades que ocasionalmente passam diante dos seus olhos – e aqui penso apenas nos fiscais e naquelas fiscais que tiverem uma orientação sexual alternativa) serão detectados à distância. No meio da muita tez escurecida pelos raios solares, lá estarão a exibir alva epiderme. No meio da mancha de corpos bronzeados, só não se distinguirão dos esquálidos turistas britânicos que aterraram no aeroporto de Faro na véspera. Sobra uma hipótese: hão-de misturar-se com os demais veraneantes, como se fossem turistas comuns em demanda dos prazeres estivais.
Se os vir na praia, em plena passagem de contra-ordenação a um vendedor ambulante que haja esquecido de acondicionar as bolas de Berlim – sem creme – em malas refrigeradas a sete graus centígrados, hei-de me acercar deles. Não será para os abraçar, ao mesmo tempo que me desfaço em agradecimentos mil. Será para lhes dirigir uns impropérios, que congeminar a ingestão de bolas de Berlim desprovidas de creme de ovos é tão lógico como comer uma francesinha sem molho, morangos com chantilly sem o chantilly, e por aí fora.
Agora me ocorre: a ASAE ainda não se lembrou de perseguir as típicas portuenses francesinhas. Não sei se o não fará para não alimentar a espúria guerra norte-sul, se o director da dita entidade é portuense de gema, ou se é apenas esquecimento. Por este andar, terão que multar o sol. É que saio da praia e dou de caras com um simpático e pueril sinal que dá as horas do “sol perigoso”. Como há cidadãos que teimam em torrar ao sol entre o meio-dia e as quatro da tarde, das duas, uma: ou saltam para o areal de bloco de contra-ordenações em riste, multando os ignaros veraneantes que se expõem a um cancro da pele, ou engendram expedição ao sol e prendem-no, por irradiação ultravioleta assassina.
Adenda – Alvíssaras aos diligentes agentes da ASAE: hoje de manhã andavam vendedores ambulantes a apregoar “bolas de Berlim, com e sem creme”. Matéria-prima abundante para contra-ordenação sem cessar. Adoro as leis feitas para ninguém cumprir! Dão um arzinho da desautorização ao emproado Estado, sempre insaciável na exibição da sua autoridade.