A neblina que rasava o solo sondava o etéreo lugar de um sonho. A luz, domada na sua baça tonalidade, ofuscando a claridade das coisas. Só havia silêncio, um perturbante silêncio. Por momentos sentira-se só no mundo, como se em seu redor não houvesse vivalma a partilhar o legado da humanidade. Para o aterrador silêncio contribua a ausência de outras formas de vida. Nem o chilrear de um pássaro, ou o rumor de um regato, nem sequer o silvo dos arvoredos quando vinha o vento embater na vegetação. Só o som dos seus passos, os sapatos ciciando contra as pequenas pedras que alcatifavam o caminho empoeirado.
Num amontoado de pedras maiores, estava um livro entreaberto. As páginas levemente amarelecidas. No papel pesado – dir-se-ia, um papiro antigo – repousava uma pedra que não deixava esvoaçar as páginas quando o vento esbracejava. Era um livro grande, grosso, pesado, majestoso. Guiado pela curiosidade, achegou-se ao promontório onde o livro se mostrava. O silêncio interrompido por uma voz sussurrando ao ouvido, uma voz sem rosto que o arrepiou, tanto quanto o que a voz lhe segredava: “este é o livro da tua vida.”
Ficou inerte e embaraçado. A preciosa racionalidade não o deixava acreditar no que se passara. Uma voz pertence sempre a um rosto. Aquela voz que lhe segredara ao ouvido vinha do nada, de um misterioso vazio, desprendida de uma face, anuindo a estranheza que o atrapalhara. Olhou e olhou nas redondezas em busca de uma personagem escondida detrás dos arbustos rasteiros, ou numa cova tapada pela vegetação densa. A racionalidade teimava em alimentar o embaraço que não deixava acreditar que a voz se fizera ouvir, que pronunciara aquelas palavras tão estranhas. Convencia-se, a cada instante que passava, que só podia estar mergulhado nas profundezas de um sonho, tão bizarro como soem ser os sonhos.
Largos minutos depois, convencera-se que a ilusão estava desfeita. Ou sonho ou não, as palavras sem rosto não cessavam de ecoar, repetitivas. “Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida”. A desorientação cedera lugar à resignação, o resultado das forças que se exauriam à medida que as explicações esbarravam em perguntas sem resposta. Já nem lhe interessava saber se estava amarrado a uma dimensão onírica ou não. Cedeu aos caprichos da ininteligível razão, acercando-se do promontório que desnudava o livro da sua vida. E seria mesmo o livro da sua vida, como se alguma entidade misteriosa houvesse retratado todos os momentos da sua vida, como se afinal os dias e as noites que se sucediam estivessem a ser vigiados por essa entidade?
A medo, subiu ao púlpito onde as páginas se descerravam. Uma fina camada de pó cobria as páginas abertas. A encabeçar a página estava, em letras vigorosas, a data do dia. Um marcador aveludado adormecera no regaço das páginas do dia, à espera que a manhã seguinte fosse testemunha de mais uma página dobrada, o novo leito onde viria o marcador deitar-se por outras vinte e quatro horas. Estranhamente, a página do dia de hoje estava em branco. Suspeitou que afinal o livro da sua vida era um embuste – ou que a sua vida era o embuste, esvaziada de conteúdo, na diluição de significado que a tornara uma tremenda página em branco, o vazio perene.
Não se resignou perante a decepção que o flagelava. Recuou uma página, mortificado por uma curiosidade que desconhecia em si. Outra vez o cabeçalho denunciando o dia correspondente. Tudo fazia sentido, até porque as imagens que começavam a passar não deixavam mentir o que acontecera no dia pretérito. Dividido entre e curiosidade e temor, recuou uma maço de páginas para confirmar se toda a sua vida estava retratada naquele livro. Escolheu uma data marcante, retida na memória, e viajou até à página correspondente. Assustadoramente rigoroso, o livro impedia a reescrita do passado. Era penhor desse passado. Das cicatrizes e dos momentos gratos, todos ali emoldurados.
Subitamente foi assaltado por um impulso de rejeição. Não que renegasse o passado, mesmo os momentos de que não se orgulhava. Não lhe apetecia gastar o tempo, o tão precioso tempo que escasseia até à vida se perder nos meandros da morte. Não queria continuar a desfolhar os tempos idos, um desperdício de tempo. Essa vida fora vivida no seu tempo. De repente percebeu que havia um maço de páginas à frente do marcador que assinalava a data presente. Seria a revelação dos dias vindouros. Uma tentação. Reprimida, por nem querer saber quantos os dias que faltavam para ser furtado à vida. E por resistir a desembaciar o que lhe reservavam os dias à frente, nem as coisas boas nem as agruras ainda por suportar. Impaciência curiosa derrotada pela asfixia do sonho. Porque só podia ser um sonho, o livro da vida ali exposto, a vida toda aberta a quem a quisesse esquadrinhar.
Sempre aprendera que o futuro é o desconhecido. Uma aventura que se dedilha à medida que os dias se sucedem. O livro só podia ser um fragmento dos sonhos que semeiam ansiedade.
Num amontoado de pedras maiores, estava um livro entreaberto. As páginas levemente amarelecidas. No papel pesado – dir-se-ia, um papiro antigo – repousava uma pedra que não deixava esvoaçar as páginas quando o vento esbracejava. Era um livro grande, grosso, pesado, majestoso. Guiado pela curiosidade, achegou-se ao promontório onde o livro se mostrava. O silêncio interrompido por uma voz sussurrando ao ouvido, uma voz sem rosto que o arrepiou, tanto quanto o que a voz lhe segredava: “este é o livro da tua vida.”
Ficou inerte e embaraçado. A preciosa racionalidade não o deixava acreditar no que se passara. Uma voz pertence sempre a um rosto. Aquela voz que lhe segredara ao ouvido vinha do nada, de um misterioso vazio, desprendida de uma face, anuindo a estranheza que o atrapalhara. Olhou e olhou nas redondezas em busca de uma personagem escondida detrás dos arbustos rasteiros, ou numa cova tapada pela vegetação densa. A racionalidade teimava em alimentar o embaraço que não deixava acreditar que a voz se fizera ouvir, que pronunciara aquelas palavras tão estranhas. Convencia-se, a cada instante que passava, que só podia estar mergulhado nas profundezas de um sonho, tão bizarro como soem ser os sonhos.
Largos minutos depois, convencera-se que a ilusão estava desfeita. Ou sonho ou não, as palavras sem rosto não cessavam de ecoar, repetitivas. “Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida. Este é o livro da tua vida”. A desorientação cedera lugar à resignação, o resultado das forças que se exauriam à medida que as explicações esbarravam em perguntas sem resposta. Já nem lhe interessava saber se estava amarrado a uma dimensão onírica ou não. Cedeu aos caprichos da ininteligível razão, acercando-se do promontório que desnudava o livro da sua vida. E seria mesmo o livro da sua vida, como se alguma entidade misteriosa houvesse retratado todos os momentos da sua vida, como se afinal os dias e as noites que se sucediam estivessem a ser vigiados por essa entidade?
A medo, subiu ao púlpito onde as páginas se descerravam. Uma fina camada de pó cobria as páginas abertas. A encabeçar a página estava, em letras vigorosas, a data do dia. Um marcador aveludado adormecera no regaço das páginas do dia, à espera que a manhã seguinte fosse testemunha de mais uma página dobrada, o novo leito onde viria o marcador deitar-se por outras vinte e quatro horas. Estranhamente, a página do dia de hoje estava em branco. Suspeitou que afinal o livro da sua vida era um embuste – ou que a sua vida era o embuste, esvaziada de conteúdo, na diluição de significado que a tornara uma tremenda página em branco, o vazio perene.
Não se resignou perante a decepção que o flagelava. Recuou uma página, mortificado por uma curiosidade que desconhecia em si. Outra vez o cabeçalho denunciando o dia correspondente. Tudo fazia sentido, até porque as imagens que começavam a passar não deixavam mentir o que acontecera no dia pretérito. Dividido entre e curiosidade e temor, recuou uma maço de páginas para confirmar se toda a sua vida estava retratada naquele livro. Escolheu uma data marcante, retida na memória, e viajou até à página correspondente. Assustadoramente rigoroso, o livro impedia a reescrita do passado. Era penhor desse passado. Das cicatrizes e dos momentos gratos, todos ali emoldurados.
Subitamente foi assaltado por um impulso de rejeição. Não que renegasse o passado, mesmo os momentos de que não se orgulhava. Não lhe apetecia gastar o tempo, o tão precioso tempo que escasseia até à vida se perder nos meandros da morte. Não queria continuar a desfolhar os tempos idos, um desperdício de tempo. Essa vida fora vivida no seu tempo. De repente percebeu que havia um maço de páginas à frente do marcador que assinalava a data presente. Seria a revelação dos dias vindouros. Uma tentação. Reprimida, por nem querer saber quantos os dias que faltavam para ser furtado à vida. E por resistir a desembaciar o que lhe reservavam os dias à frente, nem as coisas boas nem as agruras ainda por suportar. Impaciência curiosa derrotada pela asfixia do sonho. Porque só podia ser um sonho, o livro da vida ali exposto, a vida toda aberta a quem a quisesse esquadrinhar.
Sempre aprendera que o futuro é o desconhecido. Uma aventura que se dedilha à medida que os dias se sucedem. O livro só podia ser um fragmento dos sonhos que semeiam ansiedade.
2 comentários:
o tempo esse maldito nome de um livro que teima em ter vida....
Lendo noites do sertão, onde se encontra "soantes seus risos e sussurros", gostei dos ésses e pensei "como soem ser os sonhos", como achei meio de palavras comuns, procurei "soem ser os sonhos" no google, e o único resultado foi o seu blog.
Parabéns pela frase! O texto guardei pra ler depois.
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