26.7.07

Amanhecer


A luz matinal encerra a magia que rejuvenesce da noite cansativa. Dito adeus ao sono tempestuoso, depois da noite entregue nos braços do revolvido mar atirado pela ventania dos sonhos bizantinos, chega a alvorada retemperadora. Uma luz esquálida que se descobre entre as garras da noite, da longa noite que escondeu o sono inútil. Não é a noite que abraça o descanso do espírito. É o despertar de mais um dia, a luminosa aurora, ainda que pincelada com o acinzentado das nuvens que descarregam chuva.

A brisa matinal, refrescante, tonifica o corpo para o dia que desfila pelas horas fora. É ela que perfuma todos os poros, na languidez dos passos da cidade ainda adormecida, pelas ruas desertas que acordam, ainda estremunhadas, nos escassos automóveis que cambaleiam, nas poucas pessoas que saíram à rua tão cedo. Andorinhas que ensaiam coreografias em voos embriagados exaltam a alegria da manhã. Contrastam com as faces carregadas da multidão que aos poucos apinha as ruas, a multidão irada com a erupção da manhã. Contraste que também encerra a beleza matinal: o dia avança e com ele desagua a multidão atarefada, contrariada pela manhã furtar o sossego do leito. É aí que a manhã se banaliza e se quebra o fio condutor com o remanso que só a alvorada temporã permite.

E se os minutos gastam o encantamento da manhã, é porque as ruas carregadas de pessoas contrariadas corroem a leveza do ar matinal. Até a luz encontra o seu lugar trivial, sem os matizes enigmáticos que a primeira claridade vem trazer. A escassez de tudo que arremete com a alvorada é a caução da sua imponência. Que nasça tímida, custosamente empurrando o breu nocturno para o seu próprio descanso, é sinal do lento renascimento que se faz para outro dia, ensinando a recriação da vida. Da noite que finda, o recolhimento das velas, mastros desamparados onde repousa o orvalho nocturno. Os primeiros raios de sol hasteiam as velas em toda a sua grandiosidade, para que venham abraçar a luz intrépida que se levanta com o ciciar dos incessantes ponteiros do relógio.

Do amanhecer guardo a centelha da noite que a luz matinal transforma em imagem natural. Já não a feérica luminosidade que encandeia, o palpitar das luzes dos candeeiros que professam a luz artificial; é a vez dos candeeiros se apagarem para a luz natural irromper, majestosa. Só um punhado testemunha a sumptuosa alvorada, extasiados com a magnificência da luz matinal que se ergue detrás do horizonte, a luz ao início ainda baça. É como se fosse um farto pequeno-almoço, cheio de coloridas frutas que adornam o dia nascente com o perfume frutado.

A manhã fresca sedimenta a energia pueril, quando tudo se abraça com a obstinada força desalmada só possível pelo cansaço ainda virgem. A manhã que tudo renova, luz matinal que destoa do empalidecido rumor tardio que derrota o corpo cansado pelas curvas sinuosas do dia extenuante. Apetecia guardar os singelos, escassos momentos desta luz matinal, da sua alva frescura que bate contra a pele que se entrega, corajosa e solitária, ao vento que sobra da noite. Apetecia emoldurar esses instantes tão belos, reproduzi-los nas horas diurnas que vão consumindo a paciência. Só para perceber o discernimento do impossível, penhor da perfeição matinal que se resguarda na sua intensidade momentânea. Não, afinal não apetece reproduzir a fulgurância matinal para além do horizonte da manhã, ou deixava a manhã de ser pletórica.

É o bálsamo, alvorada tão cedo pelo mister de saciar em todas as gotas aspergidas pela manhã que acaba de emergir do lado nocturno. O amanhecer só meu. Vida que sai da hibernação com medo da escuridão semeada pela noite, as pétalas que se abrem com sede de entrega aos primeiros batimentos do dia. Flores que exalam o perfume do encantamento da vida renascida. O dia que começa, instantes nascentes que tudo emprestam opulência às coisas. Fosse tudo sempre a magia matinal e não haveria lugar aos baixios que a marcha do dia acostuma.


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