4.7.07

Pedro Arroja e José Sócrates, irmãos de armas


Se eu fosse uma pessoa decente, ontem não teria passado dos 120 na viagem para Ponte de Lima. E, se decente fosse, teria anotado as matrículas de todos os que me tivessem ultrapassado, pois estariam em contravenção por excesso de velocidade. Depois, para coroar a minha excelsa decência, quando visse a primeira brigada de trânsito entregava o rol dos infractores. Assim seria um decente denunciante em homenagem ao respeito pelas regras instituídas. Se eu fosse decente, pelos padrões de Pedro Arroja.

Há meses, quando Arroja debitava doutrina diária sobre o que ele entende ser o liberalismo, ofertou um exemplo de responsabilidade individual que faz parte dos cânones do bom liberalismo. Puxou lustro à memória, aos anos em que esteve no Canadá, para contar uma história comovente. A sua família e a família de um amigo meteram-se ao caminho, estrada fora, num passeio de fim-de-semana. Lá no Canadá quase toda a gente cumpre escrupulosamente os limites de velocidade e demais regras do código da estrada. A certa altura, passou por eles, em louca correria, um automóvel. Oh, heresia máxima, pisando ao de leve um risco contínuo. Nem Arroja nem o amigo ficaram em risco com a manobra do cavaleiro do asfalto, a crer no relato do auto-expoente do liberalismo lusitano. Uns quilómetros mais à frente, o amigo parou num posto de polícia. Para espanto de Arroja, foi denunciar o apressado condutor. De regresso à estrada, uns quilómetros mais à frente, aquele que tinha atropelado vários preceitos do código da estrada estava detido por uma patrulha da polícia. O amigo de Arroja, e o próprio, sentiram-se recompensados com a delação.

Para Arroja, se todos encarássemos a sério a responsabilidade individual, era assim que nos devíamos comportar perante desvios dos outros. Todos seríamos vigilantes do comportamento alheio, todos seríamos cidadãos bem comportados. Não haveria desvios à lei. Presumo, nem necessidade de polícias e tribunais e, até, de governantes. O nirvana. Ou talvez não: ao espiolharmos a vida alheia, mais depressa nos demitiríamos da responsabilidade individual para sermos penhores da responsabilidade individual do outro.

O que me inquieta é que se aceite o princípio, passando uma esponja por tantos exemplos que, de usarem o princípio em apreço, encurtaram caminho para atropelos à liberdade individual. A lógica preconizada por Arroja é perigosa pela elevada probabilidade de abusos: seríamos educados a desconfiar, pois a qualquer momento uma pressurosa alma poderia denunciar algo de errado que estaríamos a fazer – ainda que isso não estivesse a acontecer. O problema é que a coberto da responsabilidade individual que arrepia caminho à delação institucionalizada, a perfídia humana alimenta a vingança soez. Quantas delações seriam falácias acobertadas pela vingança insidiosa?

Ainda se podia convocar Pedro Arroja para a relativização de conceitos na sua aplicação geográfica. Percebo que Arroja, do alto de um moralismo empedernido e objectivável, se incomode com a convocação do relativismo. Passo por cima de questões metodológicas e atalho ao que interessa: as idiossincrasias dos povos não impedem a aplicação universal de morais tão próximas do limiar da perfeição? A história recente nega a aplicação do princípio que Arroja pretendia importar do Canadá. Ou a memória é curta, ou a delação odiosa do Estado Novo não conta para nada. A bufaria sistemática enraizou-se de tal modo que se perpetua em plena democracia, prova de que ainda estamos em menoridade cívica. Arroja vive numa torre de marfim: o país em que ele vive não é o mesmo que o meu, ou temos lentes diferentes para depurar a mesma realidade.

Lembrei-me de convocar este exemplo de Pedro Arroja a propósito dos sucessivos atropelos que dedicados militantes anónimos socialistas têm cometido através de delações bem orquestradas. Os exemplos conhecem-se, uns atrás dos outros, naquilo que alguém já rotulou, com acerto, de “respeitinho”. Quem sai da linha põe-se a jeito de uma denúncia anónima às autoridades, para que a justiça seja aplicada, implacável. Desvaloriza-se a liberdade de expressão quando ela contraria o “respeitinho” devido a quem tem a incumbência de mandar. Temos por aí uma corte de militantes locais à espera da gratificação (subida na hierarquia) por mais uma delação. O “engenheiro” Sócrates dá o exemplo, ao apresentar queixa-crime contra quem, num blogue, denunciou as patranhas relacionadas com a sua mal amanhada licenciatura.

Lembrei-me de tudo isto e, de súbito, ocorreu-me que Pedro Arroja e José Sócrates devem nutrir uma admiração recíproca do tamanho do mundo. Talvez o “engenheiro” Sócrates se tenha inspirado na comovente história contada por Arroja. E hoje, perante o relambório de bufos tão vigilantes, Arroja aplaude vigorosamente. Estranhas alianças, entre o auto-ícone do liberalismo lusitano e o expoente da “esquerda moderna”. Com “liberais” desta igualha, o liberalismo nem precisa de inimigos.

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