3.7.07

E o piloto foi salvo pelo papa santificável

Fiel das corridas de Fórmula 1, já não me lembro de um acidente tão violento como o que as imagens documentam. O piloto acidentado, o polaco Robert Kubica, saiu ileso daquela amálgama. O piloto é de Cracóvia. O papa João Paulo II, na fila de espera para obter os paramentos de santo, também era de Cracóvia. Porventura por os polacos serem muito devotos, e porque Kubica decidiu homenagear o papa seu conterrâneo, o piloto habituou-se a correr com uma imagem de “sua santidade” no capacete.

Passaram algumas semanas desde o acidente. As semanas necessárias para o lobby católico regurgitar uma teoria espantosa: houve dedo do papa defunto, que, vigilante nos aposentos celestiais, foi o salvador de Kubica. Aliás, os empenhados movimentos que querem acelerar a santificação vão arrolar mais este exemplo de milagre para apressar o processo. Contra factos não há argumentos: perguntam-se os devotos, como foi possível a Kubica sair quase sem um beliscão do monolugar destruído? Só há uma explicação: milagre divino. A sorte do piloto foi ter nascido na mesma terra do papa que está a um passinho apenas de vestir o fardamento de santo. Fosse um dos outros vinte e um pilotos e as consequências teriam sido terríveis, pois mais nenhum nasceu em Cracóvia, o que imediatamente os exclui da protecção de João Paulo II.

O desconhecimento de causa impede o discernimento. Percebo que à cegueira da fé seja conveniente destapar o milagre como explicação do acidente de Kubica. Se tivessem o cuidado de se informarem acerca dos notáveis progressos de segurança da Fórmula 1 nos últimos anos, talvez arrefecessem os ímpetos da prestidigitação divina. Entre os especialistas do desporto é voz unânime que se este acidente tivesse acontecido há cinco anos, nem os melhores esforços de João Paulo II teriam valido a Kubica. Os engenheiros que projectam os monolugares e a federação internacional do desporto automóvel (FIA) têm contribuído para o aumento da segurança dos bólides. Têm estudado diversos mecanismos que reforçam as condições de segurança, aliás com efeitos que se notam, anos mais tarde, na indústria automóvel. A menos que as vozes que se persignam todos os dias assegurem que foi a inspiração divina que conduziu os engenheiros e os responsáveis da FIA a estes estudos.

Nisto da religião, para quem está de fora a assistir, há a crença e a crendice. O patético apelo do lobby católico, que juntou todas as peças do puzzle (piloto de Cracóvia; com imagem de João Paulo II no capacete; e papa que também nasceu em Cracóvia) para reforçar a convicção de que o papa defunto não dorme – antecipando assim a sua veste santificada – é uma exibição de fanatismo. Crendice e fanatismo a uma só voz. De tal forma que as palavras de Kubica foram distorcidas. Recusou-se a considerar que tinha sido protegido pelo dedo santificado do seu conterrâneo santificável. Disse-o de forma lapidar. Logo a seguir, li em diversos sítios que Kubica sugeriu que ter saído com vida do acidente só foi possível porque João Paulo II estava, lá em cima, a velar por ele. E de nada valeu Kubica ter explicado que no seu país, de regresso ao fanatismo religioso, se escrevam disparates com a intenção de reforçar as mordaças da igreja católica sobre os crentes. Nem assim cessaram notícias dando conta que Kubica tinha dito que foi ajudado pelo milagre feito por um papa já morto.

É em desespero de causa que fazemos e dizemos os maiores disparates. Ora a igreja está mergulhada numa crise profunda, com o recuo dos crentes e a crise de missões que afasta os jovens dos seminários onde se estuda para padre. Em desespero, os fanáticos descobrem as fontes de mistérios insondáveis, sempre explicáveis pela intervenção divina ou de um santo qualquer que não se cansa de ser generoso. Eu até acho que estão a cometer uma injustiça com João Paulo II. Extenuou-se enquanto papa. Viajou, viajou sem cessar, espalhando o sucedâneo da evangelização moderna pelos quatro cantos do mundo. Exangue, doente, despediu-se da vida. E quando se pensava que jazia no merecido descanso celestial, eis que os crentes continuam a exigir actividade frenética de “sua santidade”. Nem no remanso celestial merece descanso. E nem os fanáticos entregues à crendice percebem que estas exibições tornam a igreja risível.

Breve recapitulação, só para nos situarmos: Kubica foi salvo pelo dedo papal. Então João Paulo II estava distraído quando o piloto polaco se atravancou nas rodas do Toyota que seguia à sua frente, dando início ao tremendo acidente. Se João Paulo II fosse um zelador prestimoso de Kubica, não teria permitido a manobra que desencadeou o acidente. Ou então, já percebi, foi o papa santificável que empurrou Kubica contra a traseira do Toyota, só para poder tirar o piloto polaco com vida de um acidente tão assustador. É por isso que se costuma dizer que deus escreve direito por linhas tortas?

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