5.7.07

Um passo em falso


Na inocência dos gestos, ou na grandeza dos projectos, momentos exigem passos em frente. Passos, sejam pequenos ou do tamanho da perna de um gigante. Decisões. Para a vida não ficar na mesma, entregue nos braços de uma desanimadora sensaboria. E, contudo, antes de avançar a perna apodera-se a indecisão. As hesitações pontuam as frases que percorrem o espírito. Ora a reclamar que o passo se decida, ora a desfiar um rosário de dúvidas que espalham a incerteza e coíbem o passo. Por temor que o passo venha em falso, o corpo a rebolar sem parar pela ladeira abaixo. O passo em falso que só então dirá que vamos a meio da queda no precipício sem retorno.

Enquanto os pontos de interrogação chovem com insistência, não se apressa o passo. As interrogações aparecem no receio de que o passo venha em falso. Impede o progresso da vida, esta prudência amedrontada que se inquieta com o pavor de um passo em falso, por pequeno que seja, por insignificante que seja o precipício. Há os destemidos que avançam, decididos, pelo quarto escuro rumo ao lado contrário. Podem não saber o que se encontra do lado oposto, nem sequer saber se vão deparar com espinhos pontiagudos que abrem feridas dolorosas nos pés. Avançam. O seu temor é a indecisão. Receiam abraçar-se à impassibilidade que arremete contra os corações palpitantes, ciosos de novos ares.

Há os outros. Apenas prudentes, ou apavorados com a queda estrondosa se o passo vier em falso. Apavorados com a possibilidade de tombarem do cadafalso – assim lêem as consequências penosas do passo em falso. São militantes em hesitações. Perfumam a sua vida com a monotonia das mesmas cores, das rotinas estudadas, nos dias que se repetem uns aos outros numa sequência mecânica, seca. Aos destemidos, aquelas são vidinhas com ingredientes comezinhos, os lugares tão habituais e soturnos, a insignificância da existência. Repugna-lhes o comportamento que se enleva pela sensatez que se confunde com precaução que se confunde com apatia. Por eles, hesitantes denodados, o mundo teria parado lá atrás. Os que não hesitam em avançar, nem que seja numa infindável sequência de passos em falso, jamais se contentam com o que têm. Fobia pela mudança, ou apenas insatisfação que desafia o adormecimento intelectual.

Mas há os que, em multidão, são perseguidos pelo temor dos passos em falso. Perturba-os sentirem na carne as cicatrizes dos passos em falso. Não arriscam o passo, nem que ao cortejarem a passividade se mantenham aprisionados à aflitiva existência, aos horizontes encerrados num céu tão plúmbeo. Conservam o que conhecem, mesmo que o conhecido lhes traga melancolia. Na hora das decisões, quando os pés esperam pela ordem para o passo que tanto pode ser em falso como a terapêutica mudança, apodera-se o pânico pelo desconhecido. Preferem continuar entregues nos braços de uma venenosa existência que vai demorando os dias uns atrás dos outros, como se alguma vez voltassem a apreciar a cintilante luz que se esconde detrás das nuvens sombrias e isso viesse apenas por magia. Ao decidirem se avançam ou estancam o passo, olham de soslaio para o provir diferente. Os dias desiguais podem ser um retrocesso, o tal passo em falso que pincela uma angustiante tonalidade pardacenta nos dias que se queriam soalheiros.

Há um certo esplendor no hiato tão profundo quando do passo dado vem ao de cima o melhor dos mundos ou a queda nas trevas. Um passo singelo e, por ele, a diferença tão acentuada entre o ar refrescado ou a queda livre no precipício. Os temerosos sabem que há passos sem retrocesso. E redobram as hesitações. Sabem que a insensatez não é cativa de recuar passos em falso. Uma vez dados, os passos semeiam a necessidade dos efeitos, por mais pungentes que sejam. Uns, audazes, não renegam as dores dos passos que venham em falso. Aprendem com eles. Outros acovardam-se perante a hipótese de se doerem na queda estrepitosa depois do passo em falso.

1 comentário:

ana v. disse...

- Cuidado com o precipício!
- Qual precipiiiiiiiiiiiiiiiiiicio?